FREI ALOÍSIO FRAGOSO
Esta madrugada, estando eu metade dormindo,
metade acordado, tive um sonho
enigmático, mais enigmático do que costumam ser os sonhos, algo parecido com um
sussurro no ouvido. Quase inaudível, uma voz dizia "se foste capaz de
montar um presépio vivo, por que não montar também um anti-presépio? Desta
forma, as sombras deste último realçariam a luz do primeiro. Acordei me
esforçando para decifrar este enigma com a semi-claridade dos primeiros raios
da manhã.
O ponto de partida era real. Dois dias antes, eu ensaiara a montagem de um presépio com
figuras humanas de hoje representativas dos personagens daquela noite de Belém.
Decidi recusar a sugestão. Temi agredir
este sentimento de paz que paira no universo, como estrela cadente, a cada fim
de ano. Esta espécie de saudade do Paraíso perdido. Com medo, no entanto, de
errar por omissão, acabei me dispondo a cumprir uma parte da proposta. Vou
mencionar nomes bíblicos que poderiam fazer parte do que estamos chamando de
anti-presépio, deixando a cargo dos leitores e leitoras dar-lhes uma
identidade, com outros tantos nomes vivos do cenário nacional. Herodes: ele
mesmo submisso ao Império Romano, reinava sobre um povo escravizado e
impotente. Pilatos: Procurador do
Imperador Tibério César, nada mais que um capacho
Fariseus: seita coesa de
guardiães intransigentes na defesa das tradições. Anciãos do Povo :
Conselheiros das Altas Cúpulas, pseudo porta-vozes do povo. Escribas: copistas
intérpretes da Lei, bem cotados no meio de um povo com 99% de analfabetos.
Sacerdotes do Templo: detentores do monopólio do culto e da renda do comércio
de animais para os holocaustos diários.
Estes grupos formavam a legião dos que se
agitaram com o simples anúncio de que estava pra chegar um novo Rei, precedido
por vaticínios alarmantes.
Pronto, sirvam-se destes personagens, a
seu bel prazer, na armação de um
anti-presépio vivo.
Só acrescento, à guisa de motivação:
haverá dúvida na escolha de um figurante para o patético Herodes, com sua
obsessão de apagar o brilho da Estrela?
Agora eu gostaria de apressar o passo e me
juntar à caravana de peregrinos que iniciaram sua caminhada em janeiro, com o
propósito de chegar a dezembro, em tempo de encontrar o Menino-Deus. Partiram
cheios de entusiasmo, energias, esperanças.
Quando chegaram ao mês de maio, uma parte
do grupo parou e falou aos demais: nós decidimos voltar. Estamos por demais
cansados. Sentimos falta do que deixamos para trás, nossa segurança e
tranquilidade. Perdemos todos os capítulos da novela das 20h. Obrigado pela boa
companhia. Olhem para cima e vejam uma coisa: as nuvens taparam o brilho da
Estrela.
Os demais seguiram adiante até agosto.
Logo no início de setembro outro grupo mais numeroso pediu a palavra e falou:
decidimos encerrar a jornada no lugar onde estamos e aqui permanecer. Valeu a
pena. Fizemos boas amizades e debates inesquecíveis. Estamos satisfeitos. Vamos
festejar este momento e procurar algo que nos dê maior prazer e satisfação.
Então o grupo minoritário reagiu com
firmeza e declarou: que fiquem para trás os alienados e os acomodados, os que
preferem tranquilidade e os que só buscam prazer. Nós somos os apaixonados e
almejamos a plenitude, a plena realização. Não descansaremos enquanto não
encontrarmos o Menino e sua Mãe.
Modéstia à parte, me identifiquei com
estes últimos e segui adiante com eles. Se pedirem uma palavra de estímulo,
recitarei estes versos de Drumond de Andrade: "estou preso à vida e olho
meus companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Estou onde
estão minhas raízes, meu caminho, onde sobrei, insistente, aflitivo,
sobrevivente da vida que ainda não vivi, juro por Deus, ainda não vivi".
(Em dado momento, senti uma estranha
intuição, uma certeza de que, à exceção do Menino, vou encontrar os demais,
José, Maria, os Pastores, os Magos, usando máscara).
Nenhuma palavra a mais. Silêncio para ouvir
o silêncio de Deus.
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