Maria Clara Lucchetti Bingemer
Estamos em plena celebração do mistério do Natal, uma das festas máximas do
Cristianismo e por que não dizer do Ocidente? Por toda parte e em todas as
cidades do lado de cá do mundo há ruas enfeitadas, ornamentos festivos, músicas
apropriadas tocando. Por isso mesmo o agravamento da pandemia do novo
coronavírus traz uma dor a mais: impedir ou restringir as alegres celebrações
familiares com muitas pessoas.
As famílias numerosas terão que subdividir suas
festas. As menos numerosas se reunirão cheias de cuidados. Crianças
não poderão beijar, abraçar ou subir no colo dos avós. As manifestações de
carinho serão coibidas em prol da saúde. Há que cuidar de toques, superfícies,
gestos e, sobretudo, da proximidade. Tudo para que não se espalhe ainda mais
a Covid que já vem causando tantos estragos e ceifando um número considerável
de vidas humanas.
Talvez essas restrições nos ajudem a voltarmos os
olhos para o centro do mistério que celebramos: a encarnação do Verbo de
Deus. Natal é a festa de Deus, que não se aferrou a suas
prerrogativas e se fez carne. Carne humana como a nossa, capaz de viver,
suspirar, amar, sofrer, morrer. Portanto, trata-se da festa da
humanidade, do gênero humano, da espécie humana. Embora Criador de tudo que
existe, foi em um ser humano que o Verbo, o Filho de Deus tomou carne e habitou
entre nós.
O Natal nos convida a celebrar e alegrarmo-nos com
nossa dignidade, que é grande, pois somos a única espécie criada capaz de
conter o Salvador, de recebê-lo e com ele nos identificarmos. Foi com
corporeidade semelhante à nossa que Jesus de Nazaré, o filho de Maria,
conhecido como o filho do carpinteiro, andou pelo mundo e foi reconhecido por
seus contemporâneos como alguém que estava em meio a eles, a quem viram crescer
e aprender as coisas que os meninos aprendem: falar, andar, correr.
Por isso, tantos se admiraram de que esse que viram
pequeno e depois jovem, se haja manifestado a Israel anunciando a boa nova da
chegada do Reino de Deus na sua pessoa. Muitos creram nele e depois de
sua morte o experimentaram vivo e ressuscitado, proclamando-o Senhor e Filho de
Deus.
Há mais de dois mil anos celebramos essa divina e
humana festa. Muitas vezes obscurecendo seu brilho com presentes
excessivos e jantares suntuosos. Este ano, as restrições nos dão uma
oportunidade de contemplar mais de perto a inefável simplicidade que faz a
grandiosidade infinita deste mistério: Deus se fez carne, assumiu a carne
humana. E fez do seu Natal a festa da humanidade.
O Natal, embora seja evento divino, acontece na
cotidianidade mais real e por isso mais terna: uma mulher grávida, uma família
pobre tendo que se deslocar por força da lei de um tirano, um parto a termo,
mas sem lugar apropriado para acontecer, o nascimento de uma criança que
envolve dor, choro e maravilhamento. Nasceu o menino de Maria, a quem ela
pôs o nome de Jesus, no estábulo onde se aqueciam os animais porque não havia
lugar em nenhuma das hospedarias da cidade. Mas o menino nasceu e seu
choro rompeu o silêncio da noite. O milagre da vida aconteceu no estábulo
de Belém, como acontece todos os dias nos caminhos, nas ruas, nos ônibus, nos
trens, nas casas...e também nos hospitais desinfetados e limpos. Não deixa de
ser milagre pelas circunstâncias em que acontece. O milagre é a própria
vida, tão frágil, mas ao mesmo tempo tão forte, capaz de vencer, acontecer e
mudar a face da terra.
E como esse nascimento muda a face da terra? A
criança sendo limpa e acalentada por sua mãe ajudada pelo marido; o bebê
sentindo fome e sendo levado ao seio túrgido de leite da mãe; a mulher dormindo
exausta, mas feliz porque o que nascera de seu ventre era bendito, apesar da
dor, da dificuldade e da pobreza. Este é o mistério que se dá na história
humana e a faz girar sobre seus gonzos. Esta é a luz invicta que brilhou para
todo homem e mulher que já nasceu e nascerá sobre esta pobre e combalida
terra.
Diante dessa criança, dessa mulher, dessa família,
a Igreja convida: “Vinde adoremos!” Não há nada de excessos nem de
pompas. Apenas um menino envolto em faixas deitado numa manjedoura.
Apenas a bela e comum experiência desta humanidade tão amada por Deus, que é
criada à sua imagem e semelhança. Apenas a encarnação de Deus no ventre de uma
jovem mulher. Apenas uma vida humana mostrando o caminho da salvação: ser
humano, sempre mais, profundamente, alegremente. Feliz Natal!
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da
PUC-Rio e autora de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora
Paulus), entre outros livros.
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