Eduardo Hoornaert.
Em memória de Joseph Moingt SJ
Em 2018, aos 103
anos de vida e dois anos antes de sua morte, o Jesuíta francês Joseph Moingt
(1915-2020) publicou o livro ‘L’ Esprit du Christianisme’, em que ele formula
severas críticas ao cristianismo histórico, pelo modo que esse pretende
vivenciar e divulgar o espírito de Jesus de Nazaré. O novo, em seu caso, é que
– sendo ele sacerdote católico – as autoridades eclesiásticas não reagem a ele
com as habituais proibições de ensinar e publicar, nem com a imposição de um
‘silêncio obsequioso’. Será um sinal positivo, a indicar que essas autoridades
estão percebendo que os tempos mudaram e que a disposição em dialogar franca e
sinceramente, mesmo sobre temas que foram longamente considerados ‘fora de
discussão’, é um requisito de nossos tempos?
O Padre Moingt
publicou, ao longo de muitos anos, livros que podem servir de guia para
cristãos à procura de maior clareza sobre a vivência e a formulação de sua fé.
Ele junta enorme erudição a um amor nunca disfarçado à igreja na qual nasceu e
viveu tantos anos. Mas se percebe que, ao escrever, Moingt sempre tem em mente
a humanidade como um todo, não só o mundo católico ou cristão, o que torna seus
textos atrativos para crentes e não crentes, nas mais diversas sociedades e
ambientes culturas. Seus textos são altamente críticos, mas ao mesmo tempo
demonstram um cuidado incomum com a sensibilidade de praticantes
religiosos.
Impossível tratar,
dentro dos limites desta minha colaboração, de todos os aspectos do espírito de
Jesus abordados por Moingt. Traço apenas algumas considerações que se situam,
como de costume, em perspectiva histórica.
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O espírito de Jesus (1): o misticismo.
Há de se dizer, em
primeiro lugar, que Jesus é um místico. Para avaliar o que isso pode significar
para pessoas que apreciam considerações filosóficas, remeto à contribuição de
um filósofo judeu que, no século XVII, pode ser considerado uma das expressões
primeiras e marcantes do pensamento moderno: Baruch de Spinoza.
Ele tem uma
afirmação que para muitos deve soar audaciosa, até temerária: a mística
constitui o mais alto grau da inteligência humana. Em seu livro ‘Ética’, de
1670, Spinoza escreve que o ‘amor intellectualis Dei’ não é uma intuição
despojada de razão, mas um amor que passa pelo crivo da inteligência. O místico
cultiva a inteligência, não renuncia a ela. Isso é algo muito raro. Spinoza
explica: a grande maioria das pessoas permanece a vida toda num estágio
intelectual que ele denomina ‘imaginatio’, ou seja, um estágio em que a pessoa
fica presa a impressões, imaginações, comoções e afetos que lhe vêm de fora,
mas que ele erradamente julga vir de dentro. A terceira parte da Ética de
Spinoza é inteiramente dedicada a essa ‘prisão afetiva’. Spinoza não rejeita
essas imaginações, esses ‘afetos’, mas argumenta que o homem é capaz de
alcançar um estágio intelectual superior, que ele denomina ‘ratio’. A
imaginação é um passo necessário no processo do conhecimento, mas só oferece um
conhecimento desordenado e confuso. O atual estágio da consciência humana em
geral pode ser qualificado de ‘primitivo’ e confuso, por não distinguir com
clareza a ação de Deus no mundo. A ratio, pelo contrário, permite formular as
coisas de forma mais clara. É a ciência dos cientistas. Acontece que existe um
terceiro estágio, além da ratio, algo que Spinoza chama ‘scientia intuitiva’.
Essa ciência intuitiva consiste em ver Deus, ou seja, a natureza infinita em
que vivemos e nos movemos. A ciência intuitiva é um saber que provém de
uma experiência mística (Ética, Terceira Parte). Nesse terceiro e
último grau de inteligência humana, o amor próprio coincide com o amor ao
próximo, o corpo do outro coincide com o próprio corpo, a beleza do(a) outro(a)
faz parte da própria beleza. A pessoa vive ‘sub specie aeternitatis’ (num
estágio de percepção de valores absolutos), alcança o supremo conhecimento,
passa a ver as coisas ‘a partir de Deus’ (Spinoza, Ethica, II, proposição 44).
Só poucos alcançam esse estágio, como pondera o filósofo: O que é lindo
é difícil e raro. A maioria das pessoas não percebe o valor eterno e absoluto
do universo imaginário em que nos movemos, por viver apenas por impulsos
imediatos.
Eis uma descrição
original e profunda, que supera tanto a teologia escolástica medieval, que
tentou ‘captar’ a Deus por meio de uma ratio nada intuitiva, quanto muitas
expressões dos tempos modernos. Pois a teologia escolástica vivia o tempo todo
em tensão com o misticismo da época, como comprovam as biografias de
místicos/as como Eckhart, Hildegarda de Bingen e outros/as, enquanto na Era
Moderna se costuma cultivar uma ratio que entra em conflito com a intuição e,
desse modo, se torna avessa a manifestações religiosas. Pois, e preciso
reconhecer que, em termos de valorização da afetividade e da imaginação, a
modernidade é um desastre.
É diante desse
panorama de incompreensões e tensões que se erige Spinoza, ao valorizar a
intuição mística e ao dizer que o místico, mesmo sem provas ‘cabais’, alcança o
topo do conhecimento humano ao intuir o mistério, que é Deus, e ao se deixar
impregnar por esse mistério. Afinal, trata-se de algo muito simples: intuir
Deus na beleza de uma flor, na ingenuidade de uma criança, na dor de um pobre
que bate à porta. Dizer que Deus é Pai. Como faz Jesus de Nazaré.
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O espírito de Jesus (2): Deus é Pai.
Nas páginas 210-211
do livro que acima mencionei, Moingt adverte: dizer que Deus é Pai não
tem significado metafísico, mas espiritual. É um modo de se aproximar de Deus e
de adorá-lo em espírito. Assim as pessoas simples entendem as coisas. A
expressão ‘Deus é Pai’ é de ordem mística, intuitiva. Uma intuição que se
origina na percepção que grande parte da humanidade enfrenta problemas por
vezes angustiantes. Deus é Pai dos pequenos, dos que lutam para sobreviver.
Daí, na página 189, as palavras muito duras de Moingt, dirigidas a uma igreja que
mantém um discurso em consonância com os que determinam a vida social e
econômica no mundo. Quando se diz que Deus salva, não se fala de uma salvação
extraterrestre, mas da salvação de uma humanidade que sofre e passa
necessidades. A ‘salvação do mundo’ é a ‘salvação da humanidade’.
Deus não costuma
ser apresentado como Pai na Bíblia hebraica. Ele aparece antes como Defensor de
um povo eleito. Por 285 vezes, na Bíblia, ele se apresenta como Deus tseva’ôt,
Deus dos exércitos, Deus dos mil combates, das coortes, das tropas
em marcha, das multidões em guerra, o Deus da guerra santa (1 Sm 15, 2 e outros
lugares), que amedronta e mata, que lidera as tropas para a guerra. Como se Ele
fosse um rei, um comandante de exército. E quando, no século III aC, se traduz
a Bíblia hebraica em grego, expressão tseva’ôt e traduzida
por pantocratôr, que é um título imperial e significa
‘todo-poderoso’.
Jesus sabe que seus
ouvintes estão com o velho Deus tseva´ôt na cabeça. Um Deus
majestoso, ofendido pelo pecado dos homens e que exige ‘reparação de danos
morais’. E não só os ouvintes de Jesus mantêm a tradicional imagem de Deus. Nos
dias de hoje, em muitos ambientes ainda existe muito de ‘mortífero’ na imagem
de Deus que as pessoas carregam consigo: um Deus que se ofende com o pecado,
que quer sacrifícios em compensação de ofensas recebidas, que luta contra o
‘mal’, que combate o terrorismo, o comunismo, a besta fera.
A expressão Deus
Pai, embora não desconhecida na piedade judaica, recebe um forte realce na
mensagem de Jesus. É na oração que Jesus intui um Deus Pai dos ‘pequenos’, e
ele exulta de alegria ao perceber isso. Os ‘pequenos’ que se encontram por toda
parte e o cercam o tempo todo. Já no início de sua carreira, Jesus põe o perdão
aos inimigos como condição necessária e suficiente para que sejam
realmente filhos do Pai que está nos céus (Mt 5, 44). E no final, ele
deixa a seus discípulos um único mandamento, um mandamento novo: amem-se
uns aos outros (Jo 13, 34). Um mandamento que emana do mais profundo
da humanidade de Jesus.
Eis como
rezar: Nosso pai, que está nos céus, Você é santo: faça-se
conhecido, Faça vir seu reino, Que tudo se realize segundo sua
vontade, Tanto na terra como no céu. O pão da jornada, Dá-nos
hoje. Quite nossas dívidas, Como nós quitamos a quem nos
deve. Não nos submeta à prova, Mas guarde-nos do mal (Mt 6, 9-13).
Que Deus mesmo
clareie o retrato confuso que os seres humanos têm dele. Que deixe de se
revelar Senhor, Imperador todo poderoso, rei dos reis, senhor da guerra e da
morte, soberano juiz da vida, para tornar-se pai cuidadoso da vida, do pão e do
perdão, um pai que não submete mais os seus filhos à prova para verificar sua
fidelidade, como tantas vezes se repete na Bíblia, que deixe de ameaçar e
castigar. Jesus teima em acreditar na bondade do Pai, até o último momento,
mesmo na sua angustiada oração no Jardim das Oliveiras: Se for
possível, Pai, poupe-me de beber desse cálice. Contudo, Pai, se for impossível
que se afaste esse cálice sem que eu dele beba, que seja feito o que Tu
queres (Mt 26, 39; 42). Ele luta incessantemente contra a imagem de um
Deus vingativo e cobrador, um Deus da morte, a favor do Deus da vida.
Pai, que seu nome
seja reconhecido santo, Venha seu reino, Dê-nos cada dia o pão que
nos é necessário, Deixe-os quites de nossas faltas pois deixamos quites
cada um de nossos devedores. Não nos submeta à prova (Lc 11, 2-4).
Um Deus diferente,
que não exige nada nem arma dificuldades para pôr os seus em prova.
Um Deus gratuito que não necessita de nenhuma forma de satisfação, contrário ao
Deus de Santo Anselmo, do século XI dC, que quer ver o sangue de Jesus
derramado por nossos pecados e que, portanto, quer a morte de
seu próprio filho. Um Deus da vida, contra a imagem enraizada de um Deus da
morte, difundida por imperialismos, corporativismos, interesses de uma elite
que pretende manter o povo na subserviência difundindo uma imagem imperial,
sacrificial, vingativa e majestosa de Deus.
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O espírito de Jesus (3): o Espírito Santo.
Na página 209 de
seu livro, Moingt, ousadamente, ironiza aqueles teólogos que procuram
apresentar o Espírito Santo com uma pessoa. Ele escreve: O Espirito
Santo, como observou Santo Agostinho no século V dC, não tem nada de ‘próprio’.
Ele é ‘comum’ ao Pai e ao Filho, sendo que cada um deles é o Espírito
Santo. E comenta: Santo Agostinho ficou desolado com a questão,
levantada por teólogos da época, de uma hipotética ‘procedência’ (’processio’)
de um Espírito Santo personificado, a partir do Pai e do Filho. Nisso endossa a
desolação de Agostinho: como foi possível que ‘pobres teólogos’ tenham gasto
tanto tempo e tanta energia para explicar como o Espírito Santo teria
‘completado’ a Trindade divina? Tenhamos dó de velhas formulações litúrgicas
que convidavam a adorar o Pai e o Filho ‘na unidade do Espírito Santo’. Aqui,
Agostinho e Moingt estão em consonância com os mais qualificados dos primeiros
teólogos cristãos, como Ireneu (século II) e Tertuliano (inícios do século
III), que dizem que o Espírito é ‘natural’ ao Pai e ao Filho (‘unius
substantiae’, diz Tertuliano).
Para esses
primeiros teólogos cristãos, o Espírito Santo é uma ‘força drástica’ (em grego:
‘dunamis drastikè’) que emana de Deus. Ou seja, uma força que age em momentos
de perigo. Ora, já no século II, o perigo está às portas. Avizinha-se uma
aliança do movimento cristão com os ‘poderes do mundo’. No Credo de Niceia, do
ano 325, há como perceber sinais de medo do Espírito Santo: ele fica relegado
ao final do dito Credo, vira um apêndice. Medo de um Espírito ‘que sopra onde
quer’(Evangelho de João, capítulo 3)?
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O espírito da igreja.
Aqui temos de dar
uma parada e nos deter por uns instantes em acontecimentos de 17 séculos atrás,
mas que redundaram em consequências que se fazem sentir até os dias de hoje: o
progressivo distanciamento entre o espírito de Jesus e o espírito da igreja.
Como esse tema é delicado e atinge a emocionalidade das pessoas, temos de
cuidar em não ferir inutilmente sentimentos de pessoas que amam a igreja e nela
se empenham. Nesse sentido só apresento aqui considerações de tipo histórico,
pois ‘contra fatos não há argumentos’. Determinados fatos são inelutáveis,
mesmo sendo praticados em tempos tão longínquos. Fatos que surtiram efeitos ‘de
longa duração’, que perduram em mentes e corações por longos séculos.
É nesse sentido que
leio as considerações de Moingt nas páginas 210-211 de referido livro: o
percurso do Espírito Santo, ao longo da história do cristianismo, não foi
fácil. A missão, a ele confiada por Jesus, de ser do Defensor e o Instrutor dos
pequenos, teve de encontrar refúgio nos desertos ou nos mosteiros, pois, por
longos séculos, as cidades estavam ocupadas por bispos aliados à administração
do Império Romano. Nos mosteiros havia como contemplar a Deus, estudar suas
Palavras, fortalecer a vontade de escapar à dominação do mundo. As comunidades
espalhadas pelo universo cristão cumpriam a mesma missão, uma ação lenta e
secreta do Espírito.
Como entender a
frase: as cidades estavam ocupadas por bispos aliados à administração
do Império Romano? Desde quando? Como? Em que circunstâncias?
Mais uma vez, Moingt abre o caminho. A partir da página 229 do citado livro,
ele chama a atenção ao que acontece em Roma no início do século III e como aí,
paulatinamente, um novo espírito toma conta da tradição cristã.
Um prenúncio vem de
escritores com Tertuliano, que se inquietam com o que observam nas comunidades.
Esse último escreve: há uma força poderosa que ‘expulsa a profecia, afugenta o
espírito’ (prophetiam expullit, paracletum fugavit).
Na época, uma força
poderosa emana de Roma, o centro do Império, onde reside o bispo Hipólito
(170-236). Por volta dos anos 215-218, esse bispo edita um documento, chamado
‘Traditio Apostolica’, cujo texto original foi reconstituído graças a um
trabalho lento e penoso por parte de historiadores (veja: Faivre,
A., Naissance d' une Hiérarchie, Les premières étapes du Cursus clérical,
Beauchesne, Paris, 1977).
O texto trata de
ordenamentos litúrgicos. Na introdução, Hipólito deixa transparecer que, lendo
os livros Êxodo e Levítico da Bíblia hebraica, ele ficou impressionado com a
figura de Aarão, irmão de Moisés, que se declara o primeiro ‘Sumo Sacerdote’ de
Israel e reorganiza a liturgia a ser praticada pelo povo hebreu durante o longo
percurso pelo deserto. Ele não se refere ao que, consciente ou
inconscientemente, se opera em sua mente ao contemplar a organização da
religião romana hegemônica, em seu redor. Apenas recorda que o Sumo Sacerdote
Aarão, durante a longa travessia dos hebreus pelo deserto do Sinai, manda
construir uma ‘Tenda de Ihwh’, um Tabernáculo portátil a acompanhar os hebreus
ao longo de quarenta anos. As prescrições rituais são extremamente minuciosas e
anotadas com cuidado nos referidos livros bíblicos: a Tenda de Ihwh só é
acessível a sacerdotes e só o Sumo Sacerdote tem licença de penetrar no Santo
dos Santos.
Eis, segundo
Hipólito, o que convém realizar no cristianismo. Ele mesmo se apresenta como o
primeiro sacerdote cristão, o primeiro de gerações e mais gerações de
sacerdotes. Ele manda que se coloque um altar no centro das igrejas, só
acessível ao bispo, seu diácono, seus presbíteros e membros de seu conselho,
devidamente ordenados. Os clamadores da Palavra, espalhados pelo universo
cristão, que já atuam 150 anos, conforme indicam as Cartas de São Paulo, não
têm acesso a esse altar. A mesa eucarística comunitária das origens, doravante,
se realiza nesse um altar e, desse modo, a tradicional ceia fraterna se
transforma numa ‘missa’ em que os fiéis dizem ‘amém’ quando convidados pelo
bispo-sacerdote, conforme o ritual. No final, eles ouvem as palavras ‘Ite,
missa est’, e se retiram para suas casas.
Os ordenamentos
litúrgicos de Hipólito estão em flagrante oposição com o que se lê no Novo
Testamento, que proclama que os tempos do sacerdócio ‘aarânico’ e levítico
passaram. A Carta aos Hebreus deixa claro que o culto organizado por Aarão foi
provisório e que Jesus o aboliu ‘uma vez por todas’. Doravante não há mais
sacerdócio, já que ‘todos são sacerdotes’. Dispensa-se a mediação sacerdotal
entre Deus e os homens. Encontramos a mesma firme afirmação na primeira Carta
de Pedro, com uma abundância de citações bíblicas (1 Pedro 2, 4-9): doravante,
a comunidade forma a ‘nação santa, a raça eleita, o sacerdócio real, o povo de
Deus’. O sacerdócio levítico passou, o povo reunido em comunidade constitui o
‘clero’ de Deus (5, 3). Derruba-se o antigo muro, não se tolera mais nenhum
tipo de intermediação entre Deus e seu povo.
Essas ideias, muito
avançadas, não penetram facilmente no emergente movimento de Jesus. Não sai de
uma hora para outra a imagem ancestral e arquetipal do sacerdote, que emana de
um enraizado imaginário religioso em torno de figuras intermediárias entre Deus
e os homens, criador de templos, santuários, lugares sagrados e sacerdócios.
Decerto, um antídoto contra esse poder imaginado era vivenciado, na época de
Jesus, nas sinagogas. Mas a sinagoga foi logo abandonada pelo movimento
cristão, que desse modo não encontrou suficiente força para reagir contra o
ressurgimento do imaginário sacerdotal, principalmente quando esse encontrou
apoio na leitura da antiga história de Israel e do funcionamento do sacerdócio
aarânico e levítico, como no caso de Hipólito, que pode ser compreendido como
uma vingança diante da ousadia de Jesus e de seu movimento. O judaísmo do
deserto (Aarão) e do Templo (Jerusalém) se vinga inocula no cristianismo a
saudade do Santuário, do Santo dos Santos, dos Sumos Sacerdotes, das Páscoas e
dos Pentecostes, dos levitas e dos 19 mil sacerdotes a percorrer o mundo (esse
foi o número de sacerdotes a percorrer a Palestina em tempos de Jesus).
Hipólito trabalha com emoções, com gestos e liturgias, que, por sua vez,
redundam numa nova disciplina eclesiástica e em novos dogmas. Emerge a classe
sacerdotal, enquanto o ‘povo de Deus’ é reduzido ao silêncio.
É de se admirar que
uma reforma (litúrgica, disciplinar, doutrinária) tão destoante do espírito de
Jesus tenha vigorado durante tantos séculos e nem hoje esteja submetida a uma
crítica que consiga se firmar na igreja atual. Ainda precisamos de pessoas como
Joseph Moingt e outros, a nos abrir os olhos diante de um fato patente: o
espírito da igreja, que se manifesta na liturgia e nos dogmas, destoa do
espírito de Jesus de Nazaré. Hipólito é o primeiro sacerdote na história do
cristianismo, o precursor de gerações de sacerdotes que se sucedem por mais de
17 séculos. Mesmo tendo sido, como nos informam os historiadores a partir de
documentos disponíveis, uma figura intrigante e polêmica, usurpadora do poder
hegemônico na igreja de seu tempo, Hipólito consegue formar um arcabouço
litúrgico que conta com o apoio dos administradores do Império Romano e desse
modo se firma na tradição.
Com ele se abre
virtualmente um amplo leque de imagens de esplendor, luz, glória, louvor, hinos
e cânticos, vestimentas esplendorosas. Enfim, com Hipólito retorna o ancestral
universo de sonhos religiosos. Ele cria um clima religioso, evoca antigas
saudades, anseios, antes imaginados que explicitados, no sentido de sair do
acanhamento e da modéstia de liturgias domésticas para alçar voos altos de
prestígio e realização de vaidades. Ressuscita uma ‘saudade levítica’, sempre
presente nas religiões, evoca memórias do Templo e de suas esplêndidas e
fascinantes cerimônias, realça a figura do bispo, antes modesta e serviçal, a
um patamar nunca dantes imaginado, silencia os intelectuais, marginaliza os
críticos, confere uma importância dantes inexistente a ‘ordenações’ e
‘imposições das mãos’, ativa a vaidade clerical, faz com que os ‘doutores’ e
‘profetas’, antes altamente prestigiados, percam sua independência na igreja,
reserva a função de ensinar à hierarquia. No século V, o Papa Leão Magno
(440-461) completa a evolução ao decretar: Ut praeter sacerdotes nullus
audeat praedicare, sive monachus, sive laicus, cuiuslibet scientiae nomine
glorietur (Epistula 210, 6: ‘que ninguém se atreva a pregar, além dos
sacerdotes, seja ele monge, leigo ou versado em qualquer ciência’). Em outras
palavras, o poder executivo engole a profecia, os pastores engolem os doutores.
Uma apropriação, para dizer a verdade, sempre contestada. No século XIII, Santo
Tomás ainda coloca o doutor ao lado do bispo, numa relação horizontal. Para
ele, a igreja funciona bem quando a Cathedra magistralis fica
ao lado da Cathedra pastoralis (Quodlibet 1ª, 14). Mas isso
funciona na cabeça de teólogos e intelectuais. Na vida cotidiana, a hierarquia
sempre leva vantagem, a corte episcopal se fecha, a sacerdotalização dos
quadros eclesiásticos prossegue seu curso.
A sacerdotalização
da imagem do bispo vem de mãos dadas com a passagem da ‘auctoritas scripti’ (a
autoridade do escrito, mantida por ‘mestres’ ou ‘profetas’) à ‘auctoritas
episcopi’ (a autoridade do bispo). Adolf von Harnack, grande especialista nos
estudos dos primeiros séculos cristãos, escreve: ‘Na segunda parte do século
III não era mais suficiente - a não ser em comunidades afastadas - guardar a
fé; era também preciso obedecer a um bispo’. A ideia de um elo que liga todas
as comunidades através da fé retrocede paulatinamente diante da ideia da
interligação através de regras disciplinares, já que os bispos se invocam o
papel de ‘sucessores dos apóstolos’. Vitória da burocracia sobre o espírito,
supremacia da instância administrativa sobre a vida concreta do corpo social.
A expressão
‘Tradição apostólica’, na realidade, tem um sentido irônico, pois no decreto de
Hipólito se trata de substituir a tradição apostólica pelo que se pode chamar
de ‘tradição da conveniência’. Doravante, fica inconveniente ter mulheres na
liderança de comunidades cristãs. Não convém que elas dirijam reuniões da
comunidade. Na administração do batismo, a mulher pode ajudar as mulheres a
descer dentro da água e a subir do rio, mas é sempre um homem que pronuncia as
palavras. Esse tipo de ordenamento faz com que se passe a preferir uma liturgia
mais ‘ordenada’, com programações preparadas de antemão. As improvisações,
frequentemente inconvenientes, são afastadas. Ninguém interfere na hora da
leitura. O modelo profético, doutoral, sinagogal, rabínico e plural entra em
conflito com o modelo pastoral, episcopal, unitário, ortodoxo. A tradicional
‘didascalia’ cede diante de novas regras. Na liturgia aparecem, pela primeira
vez, fórmulas fixas nos ritos de batismo, eucaristia, bênçãos e orações. O
bispo aparece com um livro na mão, o Ritual.
O ordenamento da
liturgia acarreta consigo uma nova arrumação dos ministérios. Três ministérios
se sobressaem: episcopado, presbiterado e diaconato. Os demais ministérios da
tradição anterior, como os de ‘confessores’, ‘viúvas’, leitores, virgens,
subdiáconos e terapeutas ficam ‘arrumados’ na base do novo organograma. Nem
sempre resulta fácil enquadrar ministérios existentes no novo esquema
hierárquico. Assim fica difícil colocar os ‘confessores’, ou seja, os que
professam a fé em situações de perseguição, abaixo de bispos, presbíteros e
diáconos, pois gozam de imenso prestígio junto às comunidades. Por
séculos, os ‘confessores’ constituem uma espécie de ministério à parte, ou
seja, conservam um caráter pré-hierárquico por séculos. Algo parecido acontece
com os ministérios ligados à cura. Os terapeutas são carismáticos por
excelência: não se ‘transmite’ o dom de curar por meio de ritos e ordenações.
Esse ministério desaparece aos poucos do organograma hierárquico e se refugia
no cristianismo anônimo do povo.
O realmente novo na
‘Traditio Apostolica’ é, pois, o princípio hierárquico, ou seja, o
estabelecimento de uma escala de superioridade-inferioridade entre os diversos
ministérios. Na lógica desse novo princípio, uma série de inovações ocorre no
seio do corpo social cristão num lapso relativamente curto de tempo. Assim a
imposição das mãos, que tradicionalmente indicava o carisma, passa a conferir o
‘poder’ de exercer certas funções litúrgicas e administrativas. Da mesma forma
o bispo tem o ‘poder’ de oferecer a eucaristia, remeter os pecados, ensinar e
distribuir os demais cargos eclesiásticos. No novo organograma se verifica um
deslizamento gradual do conceito de diaconia, ou seja, da ideia que os carismas
se destinam a servir a comunidade. Aparece a ideia do mando e do governo, do
poder da instituição. Esse deslizamento deve muito à influência do ambiente,
pois o modelo das organizações na sociedade greco-romana era pronunciadamente
hierarquizado. Nesse modelo, não há mais espaço para os tradicionais
exorcistas. Eles, que tinham ocupado um lugar central nos inícios, ficam
relegados ao plano de encarregados de um exorcismo cerimonial na hora do
batismo. Aos poucos ocupam um lugar inferior e puramente formal na hierarquia
de serviços eclesiásticos. Representam uma memória quase desaparecida de uma
época em que eram os ministros mais importantes na expansão do cristianismo.
Eis o que me parece
importante considerar nos dias de hoje, entre cristãos. Não é pouca coisa. Por
vezes tenho a impressão que a luta pela recuperação do espírito de Jesus por
meio de uma revisão global de ordenamentos do passado, em vigor até hoje em
igrejas cristãs, está apenas no começo.
(segue).
Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.
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