Frei Betto
Nenhum
livro sofre mais abuso de ser tomado em vão do que a Bíblia. (...) Jesus
criticou duramente os fariseus por tomarem a Bíblia ao pé de letra, como pagar
o dízimo, e deixarem de lado o que importa – a justiça, a misericórdia e a
fidelidade (Mateus 23,23).
Todo texto deve ser lido dentro de seu
contexto. Pinçar a frase de um autor para embasar uma afirmativa é correr o
risco de adulterar o sentido da narrativa. Antes de fazer da frase bandeira de
minhas convicções, um mínimo de honestidade intelectual exige que eu pergunte
qual o sentido na narrativa, o que o autor quer dizer, qual o significado das
palavras.
Nenhum
livro sofre mais abuso de ser tomado em vão do que a Bíblia. Palavra de Deus
para nós cristãos, judeus e muçulmanos, descontextualizá-la é violá-la. Há
pessoas tão apegadas à letra do texto bíblico (e não ao Espírito, como sugere o
apóstolo Paulo) que, por ignorância, acreditam mesmo que toda a humanidade
decorre de um casal, Adão e Eva. Não se dão conta de que a Bíblia jamais teve a
pretensão de fazer ciência. É um livro religioso, escrito em diferentes épocas
e à luz de distintas culturas. Adão, em hebraico, significa homem feito de
barro; Eva, vida. O Gênesis quer apenas nos ensinar que,
graças ao Criador, a vida humana brotou da natureza.
Ler a
Bíblia fora do contexto pode induzir o fiel desavisado a odiar seu pai e sua
mãe para aderir a Jesus (Lucas 14, 26). Um cristão tinha por hábito
sortear, toda manhã, um versículo dos evangelhos como motivação espiritual. Ao
abrir o texto em “Amai o próximo como a si mesmo”, adotou, naquele dia, postura
mais atenciosa com a faxineira, o ascensorista e a copeira do escritório.
Dia seguinte
caiu-lhe o versículo 5 do capítulo 27 de Mateus, sobre a culpa de Judas: “E ele
foi e se enforcou”. Ciente de que a vida é o dom maior de Deus, permitiu-se
outra chance. Deparou-se com o último versículo da parábola do Bom Samaritano:
“Vá e faça o mesmo”.
Ora, como Deus
não quer o mal, ele se deu uma última oportunidade. Veio-lhe este versículo da
paixão de Jesus em João: “O que tem a fazer, faça depressa” (13,
27)...
O teólogo
e biblista Marcelo Barros conta a história de um pastor que, em Los
Angeles, mantém um programa de TV muito apreciado nas manhãs de sábado. Um dia,
o pastor leu no auditório a carta que recebera:
“Caro
pastor Jeffrey, me chamo Jonathan Pierce. Tenho 40 anos e frequento a
Igreja Batista da North Street. Há alguns dias, ao chegar em casa, encontrei
minha esposa deitada com outro homem. Rompi o casamento e abandonei o lar.
Minha filha adolescente deu razão à mãe, com o pretexto de que sou muito
ausente e minha esposa tem direito de ser feliz”.
“Nesse
momento de grande sofrimento, recebi ajuda de um amigo de infância que é gay e
sempre me quis como companheiro. Penso em fazer uma experiência nova neste
caminho. No entanto, o pastor de minha Igreja avisou que eu teria de deixar a
comunidade. Por isso, lhe escrevo para perguntar se o senhor receberia a mim e
ao meu companheiro em sua Igreja”.
Após ler
a carta, o pastor respondeu:
“Caro
Jonathan. Podemos aceitá-lo em nossa Igreja se você rejeitar o pecado e
renunciar ao vício. Seguimos a Bíblia Sagrada e, de acordo com Levítico 20,
versículo 13, se um homem deita com outro homem ambos cometem abominação e
devem ser eliminados da comunidade. Portanto, se você desistir deste mau
caminho e se converter, será bem-vindo em nossa Igreja. Deus o abençoe”.
No sábado
seguinte, o pastor abriu o programa com fisionomia tensa, e explicou aos
telespectadores: “Meus irmãos, a Justiça do Estado da Califórnia me obriga a
ler aqui esta carta:”
“Caro
pastor Jeffrey, quero agradecer sinceramente ao senhor por ter me orientado e
me guiado para o texto sagrado da Bíblia neste momento difícil que estou
vivendo. O senhor citou o capítulo 20, versículo 13 do Levítico, para
mostrar que não posso participar da Igreja se deito com outro homem, e isso me
foi muito útil. Agradeço muito. Principalmente porque abri a Bíblia e li o
capítulo. E descobri que o senhor tem toda razão. O versículo 13 diz que se eu
dormir com outro homem devo ser morto. Mas, achei maravilhoso descobrir, no mesmo
livro, capítulo 20, versículo 10, que a minha mulher e o homem que se deitou
com ela devem ser apedrejados, e minha filha, que me rejeitou como pai e tomou
posição contra mim, também (versículo 9). Portanto, venho com esta carta
afirmar que renuncio a viver relações homoafetivas, mas faço questão de
apedrejar minha mulher adúltera, o homem com o qual ela se deitou e a minha
filha rebelde. Como sei que o senhor cumpre a Bíblia Sagrada ao pé da letra,
então, peço que junte as pedras, porque no próximo sábado, às nove da manhã, na
hora do culto, chegarei aí com minha mulher e minha filha amarradas e nuas,
como manda a lei de Deus, e também com o homem pecador. E nós, crentes de Deus,
vamos apedrejar os três até morrerem. E aí, sim, cumpriremos o capítulo do Levítico que
o senhor me ensinou a ler. Muito obrigado. Atenciosamente, Jonathan
Pierce”.
Jesus
criticou duramente os fariseus por tomarem a Bíblia ao pé de letra, como pagar
o dízimo, e deixarem de lado o que importa – a justiça, a misericórdia e a
fidelidade (Mateus 23,23).
Frei Betto é escritor, autor de “Diário de
quarentena” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org
Frei Betto é autor de 69 livros, editados no Brasil e no exterior. Você
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