Francisco de Aquino Júnior
Toda vida importa! A vida
das vítimas de Lázaro importa! Mas a vida de Lázaro também importa! E para quem
realmente crer que a vida é dom de Deus que criou o ser humano à sua imagem e
semelhança não há maior ofensa a Deus que atentar contra a vida de sua imagem e
semelhança. A banalização da vida e sua eliminação com requintes de crueldade,
espetacularização midiática e cumplicidade religiosa é a expressão máxima de
desumanização das pessoas e da sociedade, de atentado contra Deus e de
hipocrisia religiosa. Essa é a verdadeira “cristofobia” de nossa sociedade:
medo/horror/aversão d’Aquele que veio para que “todos tenham vida” e do seu
Evangelho da vida que se manifesta na banalização e eliminação da vida humana.
O assassinato de Lázaro,
sua espetacularização midiática e sua eufórica comemoração por policiais,
governos e amplos setores da sociedade expressam o grau de desumanização de
nossa sociedade, a lógica criminosa/miliciana em amplos setores do Estado e
irrelevância do Evangelho de Jesus Cristo na vida das pessoas e da sociedade.
Não é preciso insistir
muito no fracasso técnico da mega operação policial: um batalhão de mais de 270
homens com viaturas, helicópteros, drones, cães farejadores, serviço de
inteligência durante 20 dias para prender uma pessoa numa região já
identificada e demarcada; um “confronto” com a polícia que terminou com a
“morte” de Lázaro com pelo menos 38 tiros… Mas é importante fazer algumas
perguntas/reflexões sobre o contexto político, social e religioso que torna
possível e legítima essa situação.
Antes de tudo, precisamos
refletir sobre a operação policial. Foi um mero fracasso técnico ou foi só mais
uma expressão da lógica miliciana que tem caracterizado cada vez mais a atuação
policial? Aliás, foi mesmo uma “operação policial” ou foi uma “caçada” a modo
de “capitão do mato” ou de milícias? A meta era prender ou executar? Além da
sociedade amedrontada e aterrorizada, quem mais estava interessado na morte de
Lázaro? Quem dava apoio a Lázaro e com que interesse? Se ele foi morto em
confronto policial, porque seu corpo não foi deixado no local para a perícia?
Se ele não foi morto no local, por que não recebeu o tratamento adequado no
translado do local da operação para o hospital, mas foi arrancado da viatura e
literalmente jogado na ambulância? Faz parte da operação policial aquele ritual
macabro de comemoração transmitido pela imprensa? E a linguagem miliciana usada
pelo Presidente da República sobre o resultado da “operação”: “CPF cancelado”?
O Estado tem o dever de combater o crime, mas não pode fazer isso de forma
criminosa/miliciana. Isso é o fim do Estado Democrático de Direito.
Mas a banalização da vida
e a lógica miliciana que têm caracterizado muitas operações policiais e
determinações políticas têm raízes sociais mais amplas e profundas. Remetem à
nossa tradição escravocrata com sua lógica “Casa Grande – Senzala”
(senhor-escravo) e seu “capitão do mato” (caçar escravo, castigar). Isso está
incrustado em nosso imaginário e determina nossa forma de sentir/pensar e é
facilmente aguçado e manipulado em contextos de insegurança e medo. O
bandido/assassino (geralmente pobre/negro) deve ser “caçado”, “castigado” e
“eliminado”. A insegurança gera medo. O medo ativa a agressividade como
mecanismo de defesa. A agressividade torna-nos violentos. A violência nos leva
a eliminar ou querer a eliminação de quem nos ameaça. Sua eliminação produz
sensação de alívio e segurança. E essa sensação extravasa em rituais macabros
de euforia e festa pela morte e legitimação de práticas de tortura e requintes
de crueldade. É um processo trágico de desumanização das pessoas e da
sociedade…
Isso pode chegar ao
extremo da perversão religiosa. Seja no sentido de que a fé não interfere em
nossa forma de sentir/pensar/agir, não vendo contradição entre a fé e essa
lógica violenta/miliciana. Seja no sentido, ainda mais trágico, de justificar
religiosamente essa lógica perversa de “bandido bom é bandido morto”. Ouvi
relato aqui na região de gente querendo uma missa para comemorar a morte de
Lázaro. O que fizemos com o Evangelho de Jesus Cristo? Qual é mesmo o seu poder
em nossa vida pessoal, eclesial e social?
Que Deus acolha Lázaro e
suas vítimas. Que Deus console os familiares e amigos de Lázaro e de suas
vítimas. Que Deus nos liberte dessa lógica violenta/miliciana e nos comprometa
com a defesa da vida de todas as pessoas e com o enfrentamento da lógica e do
poder miliciano na sociedade e no Estado.
Francisco Junior
Aquino é Presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte – CE; professor de teologia
da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e da Universidade Católica de
Pernambuco (UNICAP).
* Porta das Cebs - https://portaldascebs.org.br/2021/07/05/a-vida-de-lazaro-tambem-importa/
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