FREI ALOÍSIO FRAGOSO
(05/07/2021)
Depois de divulgar, seguidamente, dois
artigos sobre a loucura e quatro sobre a cegueira, fui premiado com uma
surpresa, uma obra intitulada "Ensaio Sobre a Lucidez". Na mesma
embalagem, uma gentil dedicatória: "....para dar continuidade às tuas
profundas reflexões sobre a cegueira, e considerando a proximidade do período
eleitoral, envio-te esta obra de Saramago, a ti, que tantas vezes sentes o
preço da lucidez".
Obrigado, cara amiga, sei que não foi esta
a sua intenção, mas fica sendo como se fosse um sutil protesto contra a
unilateralidade: tratar seis vezes seguidas da loucura e da cegueira e nenhuma
vez dos seus opostos, a sanidade e a lucidez!
Isso maltrata o estado de espírito de leitores e leitoras, já tão
afetado pela cacofonia diária do noticiário nacional, onde, numa visão imediata
dos fatos, o placar marca 7 a 1 em favor das trevas.
É certo que na História da Humanidade, e
mais ainda na História da Salvação, a luz deve ser procurada em meio às trevas,
sua claridade não se revela de imediato, precisa do olhar do espírito, a fim de
tornar-se visível. Mesmo assim, não se tem o direito de agredir a alma das
pessoas com uma procissão de más notícias, sem ao menos uma velinha acesa em
homenagem à Esperança. Obrigado, cara amiga, por essa involuntária fisgada na
consciência do autor, e também pela chave inspiradora de uma nova Reflexão.
Na contra-capa da referida obra, estão
escritas palavras proféticas. Daqui a alguns anos, elas valerão como uma
espécie de retrato vivo dos sombrios tempos que enfrentamos agora:
"Falemos abertamente sobre o que foi
a nossa vida, se foi vida aquilo, durante o tempo em que estivemos cegos, que
os jornais recordem, que os escritores escrevam, que a televisão mostre as
imagens da cidade tomadas depois de termos recuperado a visão, convençam-se as
pessoas a falar dos males de toda espécie que tiveram de suportar, falem dos
mortos, dos desaparecidos, das ruínas, dos incêndios, do lixo, da podridão, e depois, quando tivermos
arrancado os farrapos da falsa normalidade com que temos andado a querer tapar
a chaga, diremos que a cegueira desses dias regressou sob uma nova forma,
chamaremos a atenção da gente sobre o paralelo entre a brancura da cegueira de
há quatro anos e o voto branco de agora..."
Não tenho subsídios para me alongar em
apreciações sobre esta nova obra de Saramago, pois estou nas primeiras páginas.
Apenas refiro que se trata de uma alegoria aos ritos da democracia
escondendo a fragilidade do sistema
político e de suas diversas instituições. Numa manhã de votação, igual a tantas
outras, os funcionários se deparam com um fenômeno alarmante, que se alastra
país afora: a maioria absoluta dos eleitores votaram em branco. A partir deste
fato, que Saramago chama de "corte de energia cívica", o seu gênio
vai destilando seu veneno benfazejo de críticas sobre a sociedade global, à
procura da lucidez.
Aproveito esta metáfora para ampliar a
imagem do "voto em branco", aplicando-a não só ao passageiro
movimento da mão na urna, mas, de modo especial, à conduta de passividade e
indiferença de numerosas pessoas. Isso é também sintoma de trevas, as da mediocridade,
as da ignorância, as do medo.
Proponho-me, no entanto, a dar um enfoque
não à escuridão e sim à luz que nela se retrai à espera dos olhos da Fé.
A Bíblia usa continuamente esta linguagem
de contrastes entre luz e trevas, corpo e alma, guerra e paz, vida e morte. O
profeta Isaías anuncia a vinda do Redentor com estas palavras: "O povo que
andava nas trevas viu uma grande luz" Is.9,2. O nascimento do Redentor é
assinalado por uma estrela que brilha sobre a solidão de uma Criança pobre
deitada numa manjedoura, numa obscura aldeia da Judéia. O próprio Jesus anima
seus ouvintes, após adverti-los sobre grandes tragédias que virão, com estas
palavras: " quando estas coisas começarem a acontecer, levantem suas
cabeças e exultem, pois é a sua libertação que está chegando" Lc. 21,28.
Esta visão dialética não é monopólio do
Cristianismo, encontra-se em todos os tempos e crenças. Como diz, numa espécie
de síntese universal, este provérbio latino: "amor et melle et felle
fecundissimus" (o amor é fecundíssimo em mel e fel).
Com a entrada de Jesus Cristo na História
da Humanidade, surge uma visão inteiramente nova. Não se trata mais de
alienar-se do meio das trevas para ir ao encontro da luz, trata-se, antes, de
entrar nesta batalha, e desvendar o grande
mistério: é no mesmo campo onde
opera o mal, que se oculta o bem, é do mesmo túmulo onde jaz a morte, que
ressurge a vida nova. Jesus compara o Reino de Deus a uma mulher na hora do
parto; ela está temerosa pelas dores iminentes e, ao mesmo tempo, está feliz
por causa da nova vida" Cf. Jo.16,21. O seu apóstolo Paulo coloca-se no
lugar desta mulher, numa carta aos cristãos de Corinto: "Sofro em mim como
dores de parto, até que o Cristo seja gerado em vocês" 1Cor.4,14-15. Santo
Agostinho se serve da mesma imagem para afirmar "o mundo está grávido de
Deus".
E nós pensamos, ao final: ora, se o mundo
está grávido de Deus, o que poderá nascer desta gravidez senão a Plenitude da
Vida? Amém!
Frei
Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor
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