Maria Clara Lucchetti Bingemer
Quando em 1968 Geraldo Vandré obteve o segundo lugar no Festival Record da
canção, aclamado pelo auditório, cantou sobre flores e canhões. O título
de sua composição era justamente “Para não dizer que não falei de flores”. A
audiência, a maioria composta por jovens, cantava a plenos pulmões as estrofes
da canção, entre as quais se destacava essa: Pelos campos há fome em
grandes plantações/ Pelas ruas marchando indecisos cordões/ Ainda fazem da flor
seu mais forte refrão/ E acreditam nas flores vencendo o canhão.
Muitos talvez não atinassem para o fato de que o título e a canção de Vandré
escondiam uma estratégia não isenta de ironia e engenhosidade. O Brasil
vivia seus anos de chumbo. A ditadura militar ceifava vidas e
esperança. Os efeitos da censura que pesava sobre convicções e
manifestações políticas atingiam também a cultura e suas expressões.
Infelizmente a música popular não escapava a essa tenebrosa vigilância. Os
organizadores do festival foram instruídos a não dar a vitória a Vandré,
restando-lhe o segundo lugar. Alguns dos jurados sentiram-se
profundamente frustrados, chegaram mesmo a retirar-se do evento.
Na verdade, a canção de Vandré, aguerrida e bela, era um hino e uma
convocação. Não se intimidava em criticar todos os que optavam pela
imobilidade e pretensa neutralidade, incluídos os movimentos que pregavam “paz
e amor”. O poder das flores não era tido em alta conta pelo compositor
diante da espessura violenta do ataque das armas que ameaçavam toda uma
geração.
Parece que aqueles anos voltam em certa maneira hoje. Sentimos outra vez
a linguagem da violência habitando os discursos oficiais. As armas são enaltecidas
em seu poder destruidor e até da tortura se faz apologia. Segmentos vulneráveis
da população são ameaçados. Além da pandemia, outras nuvens encobrem o
horizonte.
Entre estes segmentos fragilizados, destacam-se os povos indígenas. Não
bastasse a vulnerabilidade que apresentaram frente à pandemia da Covid 19,
esses povos que vivem no Brasil e constituem nações com culturas riquíssimas
agora se defrontam com a ameaça de um projeto de lei que ameaça alterar a
legislação sobre a demarcação de suas terras. O projeto tramita na Comissão de
Constituição, Justiça e Cidadania. Seu texto é ambíguo e polêmico por passar a
exigir comprovação de posse até 1988 para que as terras sejam demarcadas.
Além disso, no conteúdo do texto, aparece a flexibilização do contato com povos
isolados, a proibição da ampliação de terras já demarcadas e abertura da
possibilidade de permissão para exploração de terras indígenas por
garimpeiros.
Sentindo-se ameaçados, vários indígenas acompanharam a sessão de exame e
votação do projeto de lei. Além disso, no último dia 15 de junho, um
expressivo grupo realizou protesto em Brasília na esplanada dos
ministérios. No dia 23, houve outro protesto. E a polícia se fez
presente, com bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral para dispersar o
movimento. Alguns manifestantes reagiram com flechas e chegaram a atingir
policiais, que foram atendidos e não tiveram maiores consequências em
decorrência do revide.
O que queremos aqui é não tanto comentar esses elementos que são tão comuns em
toda manifestação pública: violência maior ou menor, armas,
enfrentamento. O que ilumina e faz única essa manifestação última foi a
presença das flores. Sim, as flores que Vandré lamentava que provocassem a alienação
do contexto político onde vivíamos. As flores, que muitas vezes serviram
de arma indolor para que o patriarcalismo exercesse seu silencioso e perverso
domínio sobre as mulheres e suas potencialidades. As flores, que com sua
suave beleza perfumam e enfeitam ambientes e são consideradas inofensivas e
supérfluas.
Em vez de armas, bombas e flechas, as mulheres indígenas ofereceram flores aos
perplexos policiais. Rosas. E os que vimos e participamos desse momento de
inaudita beleza nos perguntamos, envergonhados: Mas são esses os povos ditos
“primitivos”? São esses os que figuravam na Constituição Brasileira até
1988 como incapazes e menores de idade?
Ali estavam, respondendo com beleza e paz à violência, aqueles e aquelas que
foram insistente e permanentemente espoliados de suas terras, transferidos à
revelia para outros espaços, tutelados por um Estado que jamais os protegeu, ao
contrário explorou sua vulnerabilidade, não reconhecendo a eles capacidade
civil.
O ato dos indígenas de oferecer flores aos que os reprimiam e os atacavam é
surpreendente e pedagógico. Retoma e ultrapassa todas as pedagogias de
pacificação e justiça acontecidas na história, entre elas o evangelho de Jesus.
O biblista Carlos Mesters, em seu livro Flor sem defesa, fala
na força do que é pequeno, vulnerável e indefeso no mundo, que consegue
questionar e interpelar a força e o poder. Os indígenas reinterpretam e dão
novo sentido, hoje, à canção de Vandré no longínquo Festival da Canção de
1968. As flores têm palavras e falam. E podem, sim, vencer o
canhão. Quando muito, falam eloquentemente sobre a vaidade e a inexatidão
das avaliações humanas, que consideram primitivo e atrasado aquilo que é
proteção e cuidado da vida e da beleza. Ao mesmo tempo que considera bela
e poderosa a força bruta que vem com as armas da destruição, deixando um rastro
de morte atrás de si.
Maria Clara Bingemer, professora do Departamento de
Teologia da PUC-Rio, autora de Crônicas de cá e de lá, entre outros
livros.
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