Maria Clara Lucchetti Bingemer
Quando Jesus de Nazaré caminhava em direção a Jerusalém recebeu um recado de
duas mulheres a quem queria muito bem: Marta e Maria, de Betânia.
Elas mandavam notícias do irmão Lázaro: “Senhor aquele que amas está doente”.
Jesus ficou triste e viu que aquela doença não terminaria em morte, mas seria
para glorificar a Deus.
Decide ir à
casa da família que tão bem o recebia sempre em Betânia, mas tardou três dias
para chegar. Ao entrar, recebeu a notícia: Lázaro estava morto. Após somar
suas lágrimas ao pranto de todos que ali estavam, Jesus se aproximou do túmulo
do amigo morto há três dias e o trouxe de volta à vida. Era evidente seu
amor por aquele homem, do qual a Escritura não nos dá grande informação, a não
ser que era irmão de duas queridas amigas de Jesus, em cuja companhia o mestre
se comprazia e desfrutava de bons momentos. De toda essa amigável
convivência também fazia parte Lázaro, que se tornou amigo.
A que
vem essa reflexão? Queremos ligar a morte de Lázaro, que terminou em
ressurreição e vida, com a morte recente de outro Lázaro, que após ser caçado
como um bicho por 270 policiais, cães farejadores, viaturas diversas, drones,
recursos os mais variados, terminou morto com 38 tiros. Jesus choraria também
por essa morte? Esse Lázaro também mereceria sua compaixão e suas
lágrimas, sua saudade?
A
resposta talvez se possa encontrar no diálogo de Jesus com Marta nos momentos
que antecedem a ressurreição do Lázaro do evangelho de João. Após ouvir
dos lábios da amiga chorosa e triste que se ele tivesse estado com elas, o
irmão não teria morrido, Jesus lhe disse: “Teu irmão ressuscitará”. Ora,
Marta era judia. Esperava, sim, a ressurreição dos mortos no último dia,
no Dia de Javé, quando Deus viesse sentar-se para um banquete com o povo eleito
do seu coração. Pronunciou então a profissão de fé judaica: “Sei que ele
ressuscitará no último dia”.
Jesus surpreende Marta dizendo-lhe que o dia que ela espera e diz ser o
último já chegou. E chegou com ele, com sua pessoa. “Eu sou a
ressurreição e a vida.” Não há que esperar o final dos tempos. A vida em
plenitude já está entre nós, para todos. Também para o recém falecido
Lázaro, homem de bem, judeu piedoso e irmão de Marta e Maria. E também –
vejam só – para o Lázaro que foi morto em Goiás após uma caçada de mais de duas
semanas.
Argumentarão: “Era bandido...” Provavelmente, sim, podemos
identificá-lo assim. Havia cometido vários crimes. Porém, de que se
tratava a espetacular operação montada para proteger as pessoas de bem da
perigosa existência de Lázaro? Prendê-lo ou matá-lo? Tratava-se ou
não de um ser humano? Era ou não era alguém da nossa espécie, da nossa
raça? Alguém criado à imagem e semelhança de Deus, com a dignidade inalienável
de ser nosso irmão em humanidade?
Nos anos 1960, havia no Rio de Janeiro um bandido que a polícia tentava
de todas as maneiras pegar sem conseguir. Chamava-se Miranda Rosa, mas era
conhecido por seu apelido: “Mineirinho”. Tornou-se famoso na crônica
carioca pelas muitas e variadas infrações cometidas, desde assaltos a lojas
comerciais à luz do dia, atentados contra a polícia militar etc. Preso,
escapou da cadeia duas vezes. Internado no manicômio judiciário com penas
que ultrapassavam cem anos, fugiu também.
A polícia armou inúmeras armadilhas para agarrá-lo. Finalmente, a
operação que conseguiu pôr fim à sua vida contava com mais de trezentos
homens. Mais de trezentos homens procurando um único homem. Sua morte
ocorreu no dia 1 de maio de 1962. Levou 13 tiros. Dentro de sua camisa,
foi encontrada uma oração: Cinco minutos diante de Santo Antônio, que dizia
“Estou disposto a fazer tudo por ti; mas, filho, dize-me uma a uma todas as
tuas necessidades, pois desejo ser o intermediário entre tua alma e Deus, com o
fim de suavizar teus males.”
Sobre a morte de “Mineirinho”, Clarice Lispector escreveu: É,
suponho que é em mim, como um dos representantes do nós, que
devo procurar porque está doendo a morte de um facínora. E por
que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do
que os seus crimes.
Diante da foto estampada nos jornais do cadáver do moço de 28 anos
perfurado por 13 tiros, ela se debate com seu conceito de justiça. O que
é a justiça, afinal? Executar com 13 tiros um criminoso, um homem que
reconhecidamente ameaça a segurança das pessoas de bem?
Clarice parece achar que a questão é mais complexa do que parece.
Reflete que a grande luta é a do medo. E um homem que – como “Mineirinho”
– mata muito é porque teve muito medo. O fora da lei não poderia, por isso,
apesar das muitas maldades cometidas, ser entregue à maldade de outro
homem. E isso para que este não possa cometer livre e
aprovadamente um crime de fuzilamento.
Para a sensibilidade profunda da grande escritora, a justiça que se
esquece que todos somos perigosos nunca será realmente justa. Quando o
justiceiro mata, não está nos protegendo, mas cometendo o seu próprio crime,
longamente guardado. Na hora de matar um criminoso – nesse
instante está sendo morto um inocente.
Lázaro, abatido com 38 tiros, não é apenas um CPF cancelado, mais um
bandido eliminado pelas forças da lei. É alguém que nasceu de uma mulher, de
uma mãe. Foi amado, amamentado, acarinhado. Ninguém discute sua
responsabilidade pessoal. O que se discute é sua dignidade de ser
humano. E por causa dessa, sua vida importa...tal como todas as vidas que
são amadas pelo Criador que as desejou, criou e soprou em suas narinas o hálito
da vida.
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia
da PUC-Rio e autora de Santidade: chamado à humanidade (Paulinas),
entre outras obras.
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