FREI ALOÍSIO FRAGOSO
(27/06/2021)
É nas grandes crises ou nas grandes
alegrias que se revela a verdade oculta das pessoas. A pandemia do coronavirus
tem sido disso uma prova contundente. Ela liberou, dos porões do inconsciente
coletivo e individual, uma série de monstros, de bruxas, de insanidades, de
rancores clandestinos, de fraturas mal
tratadas, de traumas e recalques. O estrago foi enorme e não poupou nem
amizades pessoais nem laços de sangue familiares.
Em meio a estas avarias, voltou à tona uma
velha e desgastada pergunta: a vida é uma bênção ou um fardo? O ser humano é
anjo ou é demônio? A pandemia deu
argumentos de sobra para as duas torcidas. Numerosas vidas que voluntariamente
sacrificaram-se para salvar outras tantas vidas reacenderam nossa confiança na
bondade humana. Por outra parte, a insensibilidade e o descaso criminoso da
parte das Cúpulas políticas, do Poder econômico e de muitos indivíduos
misturaram o joio com o trigo e deixaram dúvidas sobre qual dos dois há de
prevalecer.
O que fazer deste sentimento de revolta
reprimido, arriscando-se a virar ódio ou depressão? Deixar-nos mover pelo ódio é algo autofágico,
o ódio se devora a si mesmo. Odiar é reconhecer a própria inferioridade, o
próprio medo, pois não se justifica odiar o inimigo quando acreditamos
convictamente em nossas condições de vencê-lo.
E o mandamento maior do amor, onde fica?
Ele está inserido dentro da luta. E naturalmente corre riscos. Um destes riscos
é o de confinar-se em gestos de caridade. Matar a fome dos esfaimados é dever
elementar e prioritário. Nenhum general abandona seu soldado ferido, mesmo com
risco de comprometer os planos da batalha. Fome não tem partido político nem
ideologia nem religião nem nada, só tem pressa. Mas não podemos esquecer que
ela também é arma na mão dos opressores; eles sabem que o faminto não quer mudanças,
só quer comida. Daí a importância de juntarmos a este empenho outras
iniciativas que impeçam trocar direitos
por dependência.
Temos nos deparado diariamente com o
espantalho de mortes brutais; são mortes matadas, muito mais do que mortes morridas.
Milhares morreram para que alguns ganhassem muito dinheiro. Em favor de nós
mesmos, pela nossa dor, choramos, mas, em homenagem a eles, aos que partiram, e
em defesa de outras vidas, lutemos sem tréguas. ("Oh fazedores de morte,
que não cessais de fazê-la, em vossa maligna sorte de redigir pesadelos, quando
deixareis à vida a chance de ser vivida?" Drumond de Andade). A despeito
desta justa raiva, não há razão de proibir-nos festejar a vida, manter o bom
humor, cultivar alegrias, repartir o prazer. Sem prazer não há vida e o bom
humor ativa nosso senso de proporção, impede que o excesso de raivas nos leve à
desesperança.
Por um bom tempo ainda caminharemos em
meio a sombras, por vezes em meio a trevas. Nem por isso deixamos de ser
conduzidos pela luz. "Não há maior tragédia do que ter medo da luz",
escreve o filósofo Platão.
Quanto a nós, pomos toda confiança em
Alguém que disse "Eu sou a Luz do mundo".
Sua luz brilhou ao máximo na Cruz do
Calvário. Foi aí que Ele provou sua absoluta coerência entre palavra e vida,
entre viver e resistir, preferindo o sacrifício total à recusa da sua
missão. Como podemos ter medo, estando na companhia de Quem por nós despojou-se
até a morte? Seja Ele nosso Guia,
enquanto rezamos o salmo 144: "Bendito seja o Senhor, meu rochedo, que
adestrou minhas mãos para a luta". Amém.
Frei
Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor
Como sempre, texto excelente e inquietante! Destaque para a frase “Odiar é reconhecer a própria inferioridade, o próprio medo, pois não se justifica odiar o inimigo quando acreditamos convictamente em nossas condições de vencê-lo.”
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