por Frei Aloísio Fragoso
Começo a sentir falta do meu parceiro
Daniel Lima. Pela primeira vez escrevo-lhe o nome sem o título que lhe confere
o ministério sacerdotal. Por mais de 40 anos ele afastou-se voluntariamente do
exercício deste ministério. Por que? Perguntaram alguns leitores destas
REFLEXÕES e outros continuarão perguntando. Não sei, nunca saberei. O que
procuro entender são as razões por que o sinto companheiro, no sentido
etimológico desta palavra, alguém que se senta à mesma mesa para comer o mesmo
pão comigo. Sempre que releio seus poemas, sinto-me irmanado a ele, como dois
concelebrantes de uma única Eucaristia. Isso a despeito de experiências
vocacionais totalmente diferenciadas.
Lembro do meu tempo de seminarista, quando
ouvia dos meus educadores uma conhecida citação bíblica: "tu es sacerdos
in aeternum". Traduzindo numa linguagem corriqueira: uma vez padre, padre
eternamente. Com o desenvolvimento do pensamento teológico, me firmei na
convicção de que este pensamento não traduzia a Verdade toda, mas só uma parte
dela. O sacerdócio é um serviço e o padre um servidor. Como é lógico e natural,
todo serviço só tem razão de existir enquanto haja o que ou a quem servir.
Portanto, o sacerdócio imprime um caráter temporal, não um caráter eterno, na
pessoa. Na eternidade eu não teria a quem pregar o Evangelho e perdoar os
pecados. Já estou bastante feliz de ser padre aqui na terra, por tantos anos, e
confiante de o ser para sempre. Contudo, esta visão teológica ajuda a avaliar
com empatia o enclausuramento do Pe. Daniel.
Entre os leitores destas REFLEXÕES, uns
viram em seus poemas sinais de frustração pessoal, outros, sintomas de uma
espécie de bipolaridade, outros ainda, uma forma de insatisfação com a
Instituição eclesiástica. Dou-me o direito de expressar também a minha opinião.
Ela não passa de uma conjectura, daí a pergunta em modo condicional: teria o Pe. Daniel se
enganado na escolha da vocação? Nesse pressuposto, com o passar dos anos,
alcançou a plena consciência disso e preferiu afastar-se do ministério do que
seguir adiante só na aparência. Toda farsa é abominável, mas nenhuma tanto
quanto a que se esconde em vestes sagradas.
A partir daí ele assume outra forma de
evangelização: ajudar as pessoas a pensar, destrinchando-lhes a condição humana
cheia de grandeza e pequenez, carregada de contradições.
Dos poemas que me levaram a fazer esta
leitura, impressionam-me particularmente
alguns focados na figura do pai e da mãe. Exponho-os aqui, seguro de não ferir
a ética, porque eles foram publicados sem nenhuma censura. E também porque
acredito que este assunto tem uma abrangência universal, afeta milhões de
pessoas na sua escolha e realização vocacional.
Minha mãe era feita de
incertezas
Tecida de solidão de
infindas luas.
Nunca assentou seu
coração viajeiro
de medo de esquecer o fim
da viagem.
Não dormia, sonhava,
vivia os sonhos acordada
e louca
e amava a vida
com tal ódio e paixão,
que até se percebia nos
seus olhos,
nas mãos, nos gestos,
na vontade de ser e no
desespero
de não ser nunca e ainda.
E eu perguntava coisas
e ela não respondia,
apenas navegava incertos
mares,
guiada por estrelas que
eu não via.
Minha mãe era feita de
incertezas,
mas, por certo, sabia o
que queria.
Meu pai era um homem
intermitente e palúdico
Como vagalumes na noite.
Piscam - e ei-los.
Não piscam - e não
ei-los.
Agora, aqui.
E não agora, lá.
Acendendo, apagando,
Incerto e leviano,
logo chegando, logo se
despedindo.
Um dia, foi chegando
e disse adeus. E
ficou-se.
Outra vez: "Até
logo!"
E não voltou para sempre.
Minha mãe era anoitecida.
Às vezes orvalho, às
vezes estrela.
De repente, ria. De
repente, chorava.
Falava sozinha enquanto
trabalhava.
Resmungos, ou não sei se
filosofia.
Descascava batatas,
partia cebolas
e sonhava.
"Para não perder
tempo", dizia.
Com que seria que minha
mãe sonhava?
Meu pai, homem de
espírito
mas de pouca alma.
Impermanente homem, viveu
improvisando,
discutia impossíveis,
vagabundo de múltiplas
paixões.
Descaradamente amava o
efêmero das coisas.
Nunca ficou o mesmo.
Não sabia quem era, mas
apenas que era.
E então corria antes que
a vida lhe passasse à frente.
E eu, tão diferente,
rebelei-me
contra meu pai.
E, por isso, imitei-o
(e, como ele, perdi-me,
que imitou seu pai).
Meu pai não existiu.
Foi um traço no ar.
Me fez e se desfez
como uma nuvem no céu.
Suas mãos não eram.
Seus olhos foram.
E eu, sou?
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ao dobrares aquela rua
não serás mais o mesmo
que caminha para lá
neste instante.
a cada passo cresce e
muda a vida
pois para ser
tem de tornar-se outra.
ao chegares ao fim da rua
outro serás, que és tu,
nascido do caminho que
fizeste.
(Pe. Daniel Lima)
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