Por
Maria Clara Lucchetti Bingemer
Este tempo de pandemia e isolamento, com tudo que traz de carga de desolação e
distância dos amores diversos, profundos ou ardentes, obriga igualmente a
pensar. Há mais tempo para isso, mais solidão, mais silêncio, ambiente fértil
onde nascem as grandes iluminações. E tempo há também para escutar os que
sabem. Não apenas os cientistas, mas os pensadores e os poetas que nos
abrem novas portas do conhecimento e da beleza.
Foi assim que quase 2000 pessoas se conectaram no último dia 22 de junho a uma
conferência on line dada pelo cardeal José Tolentino, português da
Madeira e responsável pela Biblioteca do Vaticano e pelo Arquivo
Apostólico. Era uma multidão virtual, sedenta de beleza e sabedoria,
ávida para ouvir as palavras que sairiam da boca desse biblista e poeta, sempre
serenas e grávidas de vida.
De tudo que ali aprendi – e foi muito – talvez o que mais retive foi a nova
configuração que o cardeal vê para a Igreja: seu deslocamento do templo para a
casa. E tal êxodo, em lugar de ser um problema e um obstáculo para o pleno
funcionamento da comunidade eclesial, representa uma fantástica oportunidade de
reencontrar sua fonte mais pura e suas origens mais genuínas.
Quando o Nazareno foi morto na cruz, uma imensa desolação se apoderou dos
discípulos. Muitos entraram em dispersão, não encontrando alívio para sua
dor e sua perda. No entanto, a boa nova da Ressurreição deu-lhes força de
recomeçar a viver. E esse recomeço, que marca o nascimento dessa
comunidade chamada Igreja, foi marcado pela união de todos em situação de
extrema fragilidade. Sem conseguir abertura na sinagoga, perseguida pelo
poder religioso e político, a comunidade viu-se convidada a abraçar sua própria
vulnerabilidade.
E que espaço encontrou para celebrar, expressar, viver profundamente essa
situação de ameaça e fraqueza? As casas. Não havia lugar para a
recém-nascida comunidade no templo. As casas das famílias passaram a ser
esses templos. Hoje, em tempos de igrejas fechadas, ou que vão abrindo aos
poucos, às vezes desafiando o perigo da doença e do contágio, os cristãos se
viram levados a ter que celebrar em suas casas. Em lugar de ir ao templo
celebrar com a assembleia reunida, são convidados a conectar seus computadores
ou celulares e a partir dali unir-se sem restrições de fronteiras geográficas,
mas ocupando o imenso espaço virtual que a tecnologia hoje abre.
Porém,
mais que isso, estão convidados a valorizar o espaço de suas casas e
residências e experimentar sua sacralidade. Esse espaço onde a família se
reúne, cozinha, lava e passa, come e bebe, conversa, briga, chora, pede perdão,
se arrepende, ri, ouve música, vê televisão, esse é o espaço da celebração da
fé, da memória subversiva e perigosa de Jesus de Nazaré.
É
também o espaço de se suportar mutuamente nas dores e fragilidades nossas de
cada dia, que hoje são pão cotidiano de todo mundo, no mundo inteiro, mas
especialmente em nosso golpeado e ferido Brasil. Espaço de ensinar às novas
gerações de filhos e netos que seus pais e avós erraram muito construindo esse
mundo que legamos a eles. E esperar que eles consigam introduzir as
mudanças que possam ser realmente transformadoras.
Muitas
casas passaram a ser verdadeiras igrejas domésticas. Por isso, não se pode
dizer que as igrejas estavam fechadas, porque as casas faziam brilhar em si as
notas características de toda comunidade eclesial, listadas no final do
capítulo 2 dos Atos dos Apóstolos: eram perseverantes em ouvir
o ensinamento dos apóstolos, na comunhão fraterna, na fração do pão e nas
orações.
A
casa e a família sempre foram igrejas primeiras, domésticas, onde se mama o
leite e a fé. Contudo, em tempos de secularização, muito dessas
características se foi perdendo e o estilo de vida não contempla mais as
possibilidades que havia antes. As pessoas estão tão apressadas, com tanto por
fazer... Cada membro da família tem horários diferentes. Não existia
quase a refeição em família; cada um com sua bandeja, comia o almoço ou o
jantar esquentado no micro-ondas, diante da televisão ou do computador.
O
vírus nos trouxe de volta para casa e foi possível olhar nos olhos uns dos
outros, ver que ali era nosso lugar eclesial, nossa igreja âncora e
primeira. Como diz o cardeal Tolentino: “antes de ser templo, a Igreja
foi casa. Jesus saiu do templo e entrou na casa. E aí começou a
experiência cristã”.
A
casa – oikia em grego – e a família são, hoje, uma grande oportunidade para que
os cristãos leigos adquiram verdadeiro protagonismo pastoral no futuro que vem
no horizonte pós pandemia.
Maria
Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da
PUC-Rio e autora de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora
Paulus), entre outros livros.
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