Na situação que estamos atravessando,
imprevisível e tenebrosa, vez por outra somos surpreendidos por um fato que nos
obriga a calar a voz da razão em favor dos impulsos do coração.
Alguém necessita de conforto pessoal e
chama-nos com urgência. Trata-se de uma pessoa amiga com quem partilhamos os
mesmos campos e as mesmas bandeiras na luta existencial. Que aconteceu? Um
parente muito próximo foi contaminado pelo coronavirus e internado na UTI.
Tudo para. Nada mais importa. O que se
apresenta à vista é somente o medo, a dúvida, a ansiedade, a dor. O coração
acelera. A razão se cala. Suas explanações são inúteis porque estamos nivelados
pela ignorância de diagnósticos, prognósticos e soluções.
Só temos uma coisa a oferecer: o coração.
Que lições podemos aprender deste
confronto entre racionalidade e sensibilidade?
Incorreria em grave mal-entendido quem
pensasse: infelizmente somos obrigados a interromper a luta, a fim de
socorrer um companheiro ferido. Como se isso fosse uma espécie de
pausa compulsória, algo lamentável porque não estava previsto na estratégia da
luta. Pensar assim seria como desacreditar uma mãe de família que se desliga
dos cuidados domésticos, relaxa a vigilância sobre os outros filhos, adia os consertos da casa porque tem
de permanecer dia e noite à cabeceira de um dos filhos acometido de grave enfermidade.
Na verdade, a vida humana é o ponto
central de qualquer especulação filosófica, de qualquer revolução social, de
qualquer doutrinação religiosa, de quaisquer ideias libertárias.
Essa mãe está enfrentando a mais
necessária das batalhas, a que garante a primazia da vida.
Não é por acaso que Che Guevara escreve:
"hay que endurecer-se, pero sin perder la ternura jamás". Este
"sin perder la ternura" não é uma concessão, é uma condição. Por trás
desta legenda há um entendimento sobre a verdadeira revolução: enquanto a razão
produz o combatente, é o coração que o conduz às batalhas. Os argumentos da
razão tem o poder de convencer, mas não o de persuadir, quem persuade é o
coração. Dom Helder costumava dizer aos que o acusavam de assistencialismo:
"quando um general detém a marcha da tropa para socorrer os combatentes
feridos, ele atrasa e pode até comprometer os planos da batalha; no entanto,
nenhum resultado será vitorioso se ele não parar para socorrer os
feridos."
Um dos grandes filósofos da História, o
francês Blaise Pascal, ocupou-se longo tempo com este assunto. É dele um
pensamento que imortalizou-se: "o coração tem razões que a própria razão
desconhece". Ele aplicava este princípio à procura da Verdade. O
conhecimento proporcionado pelos sentimentos é mais seguro do que o obtido pela
razão. É que a razão explica enquanto o coração compreende. Separada de
emoções, intuições, sentimentos, a razão se torna árida, estéril.
Isso vale também no campo da Fé. Segundo o
Evangelho de Lucas, a mãe de Jesus, incapaz de entender racionalmente os
acontecimentos envolvendo seu Filho, "guardava todas estas coisas no seu
coração". Na pessoa de Jesus, coração e razão coexistiam em perfeita
harmonia. Contudo, no trato com os pecadores, prevaleciam os sentimentos da
compaixão acima das razões da lei ("eu quero misericórdia e não
holocaustos" Mt.9,13). Numa certa ocasião, a um simples toque em sua
túnica, por parte de uma mulher doente, ele se comove e pergunta em alta voz:
quem me tocou? Quem me tocou? E só se
aquieta quando ela se apresenta e Ele diz: "vá em paz, tua fé te
curou".
Pascal foi um grande pensador, dos mais
profundos. Seria uma agressão a sua pessoa e ao seu legado confundir suas
idéias sobre a primazia do coração com
sentimentalismos piegas e alienantes, tão comuns na prática religiosa
hoje em dia.
Coroemos o vigor da filosofia com a leveza
da poesia. Reunamos Pascal e a poetiza
portuguesa Florbela Spanca: "Minha alma de sonhar-te anda perdida,
meus olhos andam cegos de te ver. Não és sequer a razão do meu viver, porque tu
és já toda a minha vida". Estes versos deixam claro que, quando se juntam
razão e coração numa única paixão, o que daí resulta é, admiravelmente, a Vida.
Por fim, voltemos ao caso real citado no
início desta REFLEXÃO. A pessoa amiga carente do nosso conforto vive a grande
angústia de não poder aproximar-se do parente enfermo. Imaginemos o efeito
incomparável que não teria sobre o doente a aproximação de quem pudesse sussurrar-lhe
ternamente: estou aqui, te amo. Oxalá os profissionais da saúde encontrem
maneiras de levar aos enfermos solitários, incomunicáveis, estes sinais de
ternura, com todo seu poder curativo, da parte dos que os amam.
Enquanto isso, todo tempo que gastarmos em
atenções cordiais e cuidados práticos com seus parentes nunca será simplesmente
uma pausa forçada em meio à luta ou um estorvo em meio aos compromissos, mas
sim a comprovação de que ainda somos humanos, filhos e filhas de um mesmo Pai,
criados à sua semelhança. Amém.
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