Talvez um dia, superada a tragédia do Coronavírus,
nos perguntemos: quem fracassou e quem foi bem sucedido, no confronto com esta
pandemia? Fracassaram os que se tornaram suas vítimas fatais? Tiveram êxito os
que sobreviveram a ela?
Seria míope a visão de quem afirmasse que a morte constitui necessariamente um
fracasso, e continuar existindo é por si mesmo uma vitória. Quantos partiram
deixando um legado imortal! E quantos
ficaram e se arrastam como cadáveres insepultos!
Nestes dias tivemos oportunidade de
escutar, numa live, um impressionante depoimento do Pe. Lancellotti. Entre
outras coisas, ele disse o seguinte: "quando uma jornalista me perguntou
qual era minha perspectiva para o futuro, lhe respondi: "é a do fracasso.
Me sentirei um fracassado." E, a seguir, lembrou outro depoimento do
célebre antropólogo e educador brasileiro, Darcy Ribeiro: "sou um homem de
Causas. Vivi pregando, lutando como um cruzado, pelas Causas que comovem: a
salvação dos índios, a escolarização das crianças. Na verdade, somei mais
fracassos que vitórias, mas isso não importa. Horrível seria ter ficado do lado
dos que venceram, nestas batalhas".
À luz destas palavras, é fácil entender os
motivos do Pe. Lancellotti preferir ser contado entre os perdedores. Mais fácil
ainda identificar quem são, onde andam e o que pensam os que hoje posam de
vitoriosos. Suas poses parecem cenas de um circo, artimanhas do palhaço: quanto
mais risadas da platéia, mais sucesso do palhaço. Gargalhemos!
Em outras áreas culturais e religiosas,
que não a nossa, outras grandes figuras humanas testemunham estas verdades. Uma
delas é o santo libertador da Índia, Mahatma Gandhi. Sua pregação de
desobediência civil contra a Inglaterra provocou violência e muitas mortes.
Então ele deixou o campo de luta e entregou-se a um jejum absoluto. "Perdi
as forças para me fazer ouvir pelo povo, disse ele. Golpeado e desamparado,
volto-me para Deus, o único que poderá me atender. Estou convencido de que um
dia Deus perguntará apenas quem somos e o que fizemos, e não ligará para outros
nomes que acrescentamos ao nosso ser e ao nosso agir."
Depois de 21 dias de jejum, até quase o
desfalecimento total, os chefes dissidentes fizeram um acordo de paz.
Os poetas também são mestres em expressar estes
sentimentos profundos. Um dos maiores poetas dos Estados Unidos, What Whitman,
escreve: "Já viu alguém dizer que foi bom ganhar o dia? Pois digo que
também é bom cair. Batalhas são perdidas com o mesmo espírito com que são
vencidas. Viva todos os heróis derrotados, os inumeráveis heróis desconhecidos
que se equivalem aos mais conhecidos heróis! Tenho encontro marcado com
eles!"
Nenhum testemunho, contudo, se compara ao
de Jesus de Nazaré. Vista pelos critérios meramente humanos, sua existência terrena
foi um total fracasso. Três anos apenas de vida pública, entre Belém e o
Calvário. Primeiro ano: acolhida jubilosa, gratidão e acolhimento popular:
"ninguém jamais falou como ele fala!" "Verdadeiramente Deus
visitou o seu povo!"
Segundo ano: primeiros sinais de
contradição. O povo percebe que Jesus interpela também suas tradições, suas
preferências, suas consciências. "Quem quiser seguir-me, renuncie a si
mesmo, tome sua Cruz e me acompanhe". "Este povo me louva com os
lábios, mas o seu coração está bem distante de mim, pois se não vêem milagres,
não acreditam". A multidão se divide: "ninguém pode fazer o que ele
faz, se não vier de Deus", diziam uns. "Mas ele se mistura com os
pecadores públicos e come em casa deles", rebatem outros.
Terceiro ano: cresce a assédio de seus
adversários. Tentam jogá-lo contra o povo: "é por poder de Belzebu que ele
opera milagres". Seus discípulos começam a distanciar-se. Pedro se
acovarda: "nem conheço este homem!".
Enfim a sentença condenatória: "é
preciso que ele morra para que se salve a nação". A tortura interior:
"Pai, afasta de mim este cálice". E a solidão do Calvário: "Meu
Deus, por que me abandonaste"?
Contudo, sabemos o que resultou deste
"fracasso", quando a semente do Evangelho começou a fermentar no
vasto campo do Império Romano, e de todos os Impérios, até os nossos dias.
Aplicadas estas idéias à luta contra o
coronavirus, voltamos à pergunta inicial: quem será contado entre os
fracassados ou entre os vitoriosos? Decerto estes últimos não precisam de
publicidade ostensiva, pois brilham com luz própria e são reconhecidos pelo seu
valor e não por suas aparências.
Serão os que sustentaram com amor e
paciência a unidade dos grupos familiares no isolamento da quarentena. Os que
combateram, com as armas da Fé, o pessimismo, a insensibilidade, a
desesperança. Os que barraram os planos das elites egocêntricas, querendo
reocupar suas fábricas para produzir bens à custa de vidas. Os que,
anonimamente, se dedicaram dia e noite à descoberta da tão almejada vacina.
Serão especialmente os que sacrificaram sua segurança e mesmo suas vidas a fim
de curar outras angústias e salvar outras vidas. E também os que aproveitaram o
tempo de sobra para sonhar e planejar novas ações para o futuro.
Não conhecemos seus nomes nem seus
endereços. Pouco importa. São eles os Vencedores. São eles que nos restituem a
confiança na dignidade humana. Que se erga em sua memória um monumento único,
com a seguinte legenda em seu pedestal:
"Desistir, já pensei seriamente
nisso, mas nunca me levei realmente a sério. É que tem mais chão nos meus olhos
do que cansaço nas minhas pernas; mais esperança nos meus passos do que
tristeza nos meus ombros; mais estrada no meu coração do que medo na minha
cabeça" (Cora Coralina).
Amém.
FREI ALOÍSIO FRAGOSO é frade franciscano, coordenador da
Tenda da Fé e escritor.
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