Por
Leonardo Boff
São
muitos irmãos e irmãs nossos indígenas que estão morrendo por causa do Covid-19
e o descaso das políticas genocidas e etnocida do atual Governo.
Dedico-lhes
este belo mito-estória dos povos amazônicos sobre o sentido da morte e da
entrada na suprema Felicidade. Ela vale também para os familiares dos milhares
de falecidos por causa do Coronavírus. Eles merecem a nossa solidariedade e
também nossas palavras de consolo.
Sempre
nos perguntamos: como as pessoas falecidas chegam ao céu? Há uma convicção
entre os povos de que todos devem fazer uma viagem. Nessa viagem há provas a
passar. Segundo este relato dos povos amazônicos, cada um deve se purificar,
tornar-se leve para poder mergulhar para dentro daquele mundo de alegria e de
festa onde estão tdos os antepassados e os parentes falecidos.
A
nossa tristeza é que, por causa do descaso das atuais autoridades que desprezam
e até odeiam os povos originários, muitos pajés estão morrendo, vítimas do
Covid-19. Com eles desaparece uma inteira biblioteca de conhecimentos que eles
herdaram, enriqueceram e sempre passam às novas gerações. Com sua morte há uma
ruptura dolorosa dessa tradição. Eles e nós sofremos e ficamos mais pobres. A
todos eles nossa profunda solidariedade e com-paixão, sofrendo também a dor que
eles sofrem: LBoff
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Em
muitas tribos da Amazônia acredita-se que os mortos se transformam em
borboletas. Durante o tempo necessário para a purificação, cada qual ganha uma
forma adequada. As que se purificam logo, são alvíssimas, com poucas horas de
vida e com cores brancas. Penetram diretamente no mundo da felicidade.
As
que precisam de mais tempo, são menores, leves e multicores. E as que precisam
de muito tempo são maiores, pesadas e com cores escuras.
Todas
elas voam de flor em flor, sugando nectar e fortalecendo-se para carregar o
próprio peso ao se alçarem ao céu, onde viverão felizes com todos os
antepassados e parentes que estão apenas no outro lado da vida. Conta-se
naquela floresta a seguinte estória:
Coaciaba,
era uma jovem índia, esbelta e de rara beleza. Ficara viúva muito cedo, pois
seu marido, valente guerreiro, tombara sob uma flecha inimiga. Cuidava com
extremo carinho da única filhinha, Guanambi.
Para
aliviar a saudade interminável do marido, passeava, quando podia, pelas margens
do rio, vendo as borboletas ou na campina, perto do roçado, onde também
esvoaçavam os colibris e outros insetos.
De
tanta tristeza, Coaciaba acabou morrendo. Não se morre só de doença, por
velhice ou por causa de um vírus maligno da natureza. Morre-se também por
saudade da pessoa amada.
Guanambi,
a filha, ficou totalmente sozinha. Inconsolável, chorava muito, especialmente,
nas horas em que sua mãe costumava levá-la a passear. Mesmo pequena, só queria
visitar o túmulo da mãe. Não queria mais viver. Pedia a ela e aos espíritos que
viessem buscá-la e a levassem lá onde estivesse a sua mãe.
De
tanta tristeza, Guanambi foi definhando dia após dia até que também ela morreu.
Os parentes ficaram muito penalizados, com tanta desgraça sobrevindo sobre a
mesma família.
Mas,
curiosamente, seu espírito não virou borboleta como a dos demais índios da
tribo. Ficou aprisionado dentro de uma linda flor lilás, pertinho da sepultura
da mãe. Assim podia ficar junto da mãe, como havia pedido aos espíritos.
A
mãe Coaciaba, cujo espírito fora, sim, transformado em borboleta, esvoaçava de
flor em flor sugando néctar para se fortalecer e encetar sua viagem ao céu.
Certo
dia, ao entardecer, ziguezagueando de flor em flor, pousou sobre uma linda flor
lilás. Ao sugar o néctar, ouviu um chorinho triste e doce. Seu coração
estremeceu e quase desfaleceu de emoção. Reconheceu dentro dela a
vozinha da filha querida Guanambi. Como poderia estar aprisionada ai? Refez-se
da emoção e disse:
-Filha
querida, mamãe está aqui com você. Fique tranquila que vou libertá-la para
juntos voarmos para o céu.
Mas
deu-se logo conta de que ela era uma levíssima borboleta e que não teria forças
para abrir as pétalas, romper a flor e libertar a filhinha querida.
Recolheu-se, então, a um canto e, em lágrimas, suplicou ao Espírito criador e a
todos os ancestrais da tribo:
-Por
amor ao meu marido, valente guerreiro, morto em defesa de todos os parentes,
por compaixão de minha filha órfã, Guanambi, presa no coração da flor lilás, eu
vos imploro, Espírito benfazejo e a vós todos, anciãos de nossa tribo:
transformem-me num passarinho veloz e ágil, dotado de um bico pontiagudo para
romper a flor lilás e libertar a minha querida filhinha.
Tanta
foi a compaixão despertada por Coaciaba que o Espírito criador e os anciãos da
tribo atenderam, sem delongas, a sua súplica. Transformaram-na num belíssimo
beija-flor, leve, ágil, que pousou imediatamente sobre a flor lilás. Sussurrou
com voz carregada de enternecimento:
-Filhinha,
sou eu, sua mãe. Não se assuste. Fui transformada num beija-flor para vir
libertá-la.
Com
o bico pontiagudo, foi tirando com cuidado pétala por pétala até abrir o
coração da flor. Lá estava Guanambi sorridente, estendendo os bracinhos em
direção da mãe.
Purificadas
e abraçadas voaram alto, cada vez mais alto até chegarem juntas ao céu.
Desde
então se introduziu entre indígenas amazônicos, o seguinte costume: sempre que
morre uma criança órfã, seu corpinho é coberto de flores lilás, como se
estivesse dentro de uma grande flor, na certeza de que a mãe, na forma de um
beija-flor, venha buscá-la para, abraçadas, voarem para o céu, onde estarão
eternamente juntas e felizes com todos os antepassados e com todos os demais
parentes.
Leonardo Boff reescreveu mitos-estórias de nossos povos indígenas: ”O casamento entre o céu e a Terra”, Mar de Ideias, Rio de Janeiro 2014.
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