Em sua Carta Circular de 7-8 de março
de 1964, Helder Camara escreve os seguintes versos:
O pessimismo otimista
Me parece
A maneira sólida e cristã
De ser otimista (Volume I, Tomo I
da publicação das Cartas pelo Cepe, Recife, p. 411).
O que significam essas palavras?
1. Quem lê o texto corrido das Cartas
de Helder Camara, só encontra textos animadores e motivadores, mas não se dá o
mesmo com os poemas inseridas em ditas Cartas. Ali, não raramente, aparece um
Helder irrequieto, angustiado e mesmo pessimista. Uns meses antes
dos versos acima citados, em final de outubro de 1963, ele escreve:
Se uma sombra de angústia
Me visita de repente,
É ao passar nas terras secas
Nos desertos
Onde um poço no oásis
É o sonho
Dos homens e dos camelos
Tantas vezes seduzidos
Pelas miragens (Carta Circular
21-22/10/1963, I, I, pp. 220-221).
E pouco depois de escrever sobre
o pessimismo otimista, ele pede a Deus de não se ofender com seus
sentimentos negativos:
Tu te ofendes
Se eu Te disser
Que o mundo surge aos meus olhos
Informe,
Dolorido,
Inacabado? (Carta Circular
3-4/04/1964, I, I, p. 390).
No início de 1965, preparando-se a
viajar a Roma para a última Sessão do Concílio Vaticano II, Helder se premune:
Há instantes
Em que os ouvidos
Devem estar
Juntinho dos olhos.
Há instantes
Em que os olhos
Devem estar
Distantes, muito distantes,
Dos ouvidos (Carta Circular
1-2/03/1965, II, II, p. 236).
Como se fosse um aguilhão, ele sente
a mesquinhez, o medo, a reticência, enfim, os sentimentos que ele espera
encontrar em Roma. Ele procura se livrar do alçapão traiçoeiro:
Quando se livra um pássaro
Do alçapão traiçoeiro
Em que caiu.
Ele sai espantado,
Assustadiço,
Mas incólume e feliz (ibidem, p. 237).
Pássaro incólume e feliz, ele encontra, no
final do Concílio, uma oportunidade de extravasar o que sente diante da
assembleia mundial de bispos, que já dura quatro anos. Quem oferece,
inesperadamente, a oportunidade, é o próprio amigo Papa
Paulo VI. Em meados de novembro 1965, poucos dias antes da solene
encerramento do concílio, ele pede ao Bispo brasileiro sugestões
para as cerimônias finais.
Helder empenha-se com tanto afinco na
tarefa de preparar tais ‘sugestões’ que nem tem tempo para participar da
assinatura do Pacto das Catacumbas, do qual foi um dos principais arquitetos,
no dia 16 de novembro, com os amigos do Grupo da Pobreza.
Cobertas pelos mais efusivos
protestos de atendimento filial ao Papa, as Sugestões
para o Encerramento do Concílio são, na realidade, uma ‘obra de
malandro’, uma paródia, a expressão irônica do pessimismo que
afeta Helder.
Ele propõe que o Papa se disponha a
uma série de diálogos, preces, encontros, ao longo dos sete
últimos dias do Concílio, ou seja, entre os dias 2 e 8 de dezembro de 1965. O
programa se iniciaria, no dia 2, por um Diálogo do Santo Padre com um
grupo de Ateus, em homenagem a todos os que têm fome e sede de verdade, na
Biblioteca do Vaticano; no dia seguinte uma Prece ecumênica com os
Hinduístas na Pinacoteca do Vaticano; no dia 4, Prece
ecumênica com os Budistas no Museu do Vaticano; no dia 5, Um
Encontro inesquecível, que dê oportunidades excepcionais ao Espírito Santo, em
uma Sala dominada pela figura de Abraão ou da Virgem (aqui talvez um
encontro com muçulmanos, pela alusão à figura de Abraão); no
dia 6, Prece ecumênica com os Judeus, na Antiga Sinagoga de Roma,
transformada em Igreja católica, ou em Sala dominada pela figura de Moisés;
no dia 7, Vigília Bíblica com os Observadores não católicos, na
Basílica de São Pedro; finalmente, no dia 8, Santo Padre, daríeis
permissão para que, sob Vossa autoridade e convosco, o Concílio canonizasse,
publicamente, o Papa João XXIII, na Praça de São Pedro? (Carta
Conciliar 6-7/11/1965, I, III, pp. 215-216).
Pura paródia: Helder declara - sem
mais nem menos - que o Concílio falhou. Não conseguiu nem acenar ao que
pertence ao âmago do cristianismo: o amor acima de quaisquer clausuras e
divisões. Um papa que abraça ateus, hinduístas, budistas, islamitas, judeus e
não-católicos nada mais faz que seguir o ensinamento de Jesus. Mas isso é
impossível em Roma 1965. Daí o pessimismo de Helder. Ele sabe
perfeitamente que o Papa não vai fazer nada do que sugere: sei que o
Santo Padre não vai poder fazer nada disso. Mas sinto necessidade de
apresentar-lhe estas sugestões que, no íntimo, ele gostará de receber (ibidem.
p. 215). O Papa bem que gostaria de seguir Jesus, mas não o
consegue. Melhor ir ao circo: hoje - não se espantem - pretendo, às 16
horas, ver o Circo Orfeu. Preciso mergulhar no mundo das crianças: elas
acreditam no impossível. Pois é disso que se trata: propor o
impossível. E é continuando a insistir no impossível que Helder, teimoso, ainda
acrescenta: Talvez, Santo Padre, o discurso de encerramento seja a hora
providencial para dizer que, permanecendo amigo de todos os povos e justamente
para sê-lo sempre mais, pensais em despedir-vos do Corpo Diplomático e em
trazer de volta os Vossos Núncios (ibidem, p 215). E então termina se
desculpando pela franqueza: Santo Padre, a única escusa para esta Carta
é reafirmar que ela é um gesto de puro amor. Muito filialmente em Jesus
Cristo (ibidem, p. 216).
O texto vai imbuído de pessimismo,
e mesmo assim há um vislumbre de otimismo na alusão ao fato
que o Papa, no íntimo, gostará de receber as sugestões do
intrometido Bispo Auxiliar do Rio de Janeiro (ibidem, p. 215).
Não é só a assembleia de bispos que
entristece Helder. É também, e talvez de modo mais angustiante, a situação em
que vive a maioria da população de Recife, a cidade à qual foi enviado como
Arcebispo em 1964:
Ah! Como são tristes meus dedos,
Arrancarão, instintivamente, do
violão,
Canções magoadas.
Modelarão na argila
Bonecos severinos (do poema ‘Vida e
morte severina’, do poeta pernambucano Cabral de Melo)
De olhares angustiados
E sorrisos tristes (Carta
22-23/3/1966, III, I, p. 155).
O Bispo vai assistir ao filme ‘Zorba,
o grego’, e volta entusiasmado com a ‘dança do fracasso’ de Antony Quinn.
Mas a chuva que cai abundante sobre os mocambos de Recife o angustia:
Chuva, dá um jeito
De abrir goteiras
Em todo o meu corpo,
De gelar meus ossos,
De alagar a minha alma.
Mas deixe em paz
Os mocambos de minha gente
Que precisa descansar
Da realidade triste
E esquecer no sono
A fome impertinente (Carta
20-21/3/1966, III, I, p. 204),
Não aguenta ver tanta miséria em seu
redor:
Já não aguento, Pai,
ver tanta miséria, ouvir tanto
lamento.
Sabes que comida perde, dia a dia,
qualquer interesse
para quem carrega nos olhos
as imagens que eu carrego,
para quem guarda nos ouvidos
as vozes que registro para
sempre? (Carta 18.19/2/1965, II, II, p. 193).
2. Diante desses acessos de pessimismo por
parte de Helder Camara, algumas figuras paradigmáticas da literatura nos vêm à
memória. Se Helder, no Concílio, não canta qual pássaro preso em gaiola, mas se
livra do alçapão, como então caracterizar seu comportamento ao longo do
Concílio Vaticano II? Imagens alucinantes o acometem ao ver a corte romana em
torno do papa, as procissões, as cerimônias. Helder vê o Imperador Constantino
atravessando a Basílica de São Pedro, o Papa jogando sua Tiara no Rio Tibre e
distribuindo as riquezas do Vaticano com os pobres de Roma e indo morar num
apartamento numa das pracinhas da cidade.
É aqui que emerge a figura de Dom
Quixote. Aliás, vale lembrar que diversos observadores da cena conciliar
reparam, com sentimentos diversos, algo ‘quixotesco’ nos comportamentos e nas
inciativas do Bispo Auxiliar de Rio de Janeiro. Quando Helder ouve falar disso,
ele não se esquiva, mas pelo contrário, demonstra que gosta da comparação, ao
ponto de escrever que ela lhe dá um sentimento de maior aproximação com Jesus
Cristo:
Quem não sabe
que o verdadeiro Dom Quixote
se chama Jesus Cristo? (Carta Circular
1-2/10/1969, IV, IV, p. 135).
Onde reside mesmo o segredo do
romance de Cervantes, que conquistou milhões de pessoas ao longo desses cinco
últimos séculos, em 2002 foi escolhido melhor obra de ficção de todos os tempos
pelo Clube Norueguês de Livros e conta com a admiração geral? Como entender que
Dom Quixote é o livro mais difundido do mundo, depois da Bíblia, que conta com
nada menos de 450 milhões de cópias impressas, em cinquenta línguas e é
considerado, por escritores como o argentino Jorge Luís Borges, um ‘patrimônio
da humanidade’? O ‘cavaleiro da triste figura’, que anda desolado pelos campos
da Espanha, guarda na alma a amarga ironia em ver que os sonhos mais lindos
esbarram na dura realidade. Um pessimismo resiliente perpassa
sua alma: não há lugar para o puro amor, o puro compromisso com um mundo
melhor. O sonho impossível.
De outro lado, na opinião de muitos
comentaristas, o segredo do sucesso de Cervantes está no fato que Quixote,
apesar de não se conformar com a realidade em seu redor e cultivar - desse modo
– o pessimismo, nunca abandona seu supremo sorriso, sua
refinada ironia, seu otimismo igualmente resiliente. O romance
de Cervantes constitui, por conseguinte, um excelente exemplo do pessimismo
otimista que anima pessoas como Helder Camara.
Emerge também a figura do Príncipe
Michkin, do romance ‘O Idiota’ de Dostoievski. Inadaptado, ridicularizado,
desajeitado, um príncipe fracassado e ‘decaído’. Sua compaixão sem limites por
pessoas indefesas é uma idiotice. Enquanto todos o consideram ingênuo, ele é
capaz de descobrir a intimidade das pessoas por um simples olhar. A sociedade
não suporta tanta pureza e decide que o sanatório é o lugar apropriado para o
Príncipe Michkin. Raskolnikov, do romance ‘Crime e Castigo’ (do mesmo escritor)
contracena. Estudante talentoso, ele se sente chamado a colaborar com a
melhoria de seu país. Cultiva grandes planos, mas não tem dinheiro para
realizá-los. Ora, ele vive numa pensão mantida por uma velha senhora, uma
agiota que tem muito dinheiro e pouca cabeça. Para Raskolnikov, ela é uma ‘pessoa
ordinária’, descartável, enquanto ele é extraordinário, pode quebrar regras
estabelecidas em prol do avanço humano. Assombrado com sua imensa
responsabilidade, Raskolnikov planeja e concretiza o assassinato da velha
agiota e consegue se apropriar de seu dinheiro. Isso o faz extraordinário,
acima de leis e costumes, sentimentos e afetos banais (como amar um neto, por
exemplo). Ele vive num plano superior, não teme infringir regras estabelecidas
e contradizer opiniões generalizadas. Enxerga longe, faz parte do seleto grupo
de sujeitos que são capazes de mudar o rumo da história. E nisso se torna um
criminoso. Aí acontece o inesperado. A própria consciência de Raskolnikov passa
a se insurgir contra ele e o empurra, inexoravelmente, à autodestruição. A consciência
sufoca Raskolnikov, esfacela seu íntimo, causa doença. No final do romance, ele
chega a vislumbrar sua própria baixeza, sua desumanidade, e perde o mínimo
senso de respeito por si mesmo. Sua única âncora de salvação é o amor de uma
mulher.
Eis três figuras literárias que me
vêm à memória ao me aprofundar nos escritos de Helder Camara: Dom Quixote,
Michkin e Raskolnikov. Os dois primeiros por vivenciar o pessimismo
otimista de Helder, o último vivenciando um otimismo ilusório que
leva ao crime, ao seguir impulsos egocêntricos de poder e glória.
3. Podemos cavar mais fundo. Em
última instância, o pessimismo otimista de Helder remete a uma
figura que apareceu no palco da história numa das periferias do Império Romano,
dois mil anos atrás: Jesus de Nazaré. Lembro que o próprio Helder se compara
com Quixote e Jesus:
Quem não sabe
que o verdadeiro Dom Quixote
se chama Jesus Cristo? (Carta Circular
1-2/10/1969, IV, IV, p. 135).
Enquanto o Evangelho de Mateus relata
que a última exclamação de Jesus, na cruz, expressa um profundo pessimismo (‘meu
Deus, meu Deus, por que me abandonaste?’), no Evangelho de João (Jo 19, 30),
Ele se mostra otimista: ‘cumpri a missão’ (em grego ‘tetelestai’,
do verbo ‘teleô’: terminar uma tarefa, cumprir um compromisso). Jesus quase não
aguenta o sofrimento físico, mas no íntimo da alma está satisfeito com o
percurso realizado. Vivencia um pessimismo otimista.
Difícil exagerar quando se trata de
avaliar a importância de Jesus na história da humanidade. Enquanto, antes dEle,
os líderes mais expressivos do mundo, como César, Augusto e Xerxes, além de
tantos criadores de grandes impérios como o assírio, babilônico, egípcio,
persa, grego e romano, trabalham a vida toda para humilhar, submeter,
escravizar e submeter (‘Dominare populos memento, Roma’), o camponês da
Galileia vivencia exatamente o contrário. Ele simplesmente parte da ideia
bíblica, já expressa no primeiro capítulo do Livro Gênesis, que todas as
pessoas humanas são criadas ‘segundo a imagem e semelhança de Deus’ e por
conseguinte merecem o respeito que deve reinar entre iguais. Uma ideia
revolucionária, que não se encontra nem nas ordenanças gravadas na ‘stèlè’ de
Hamurabi, nem em algum documento ou monumento que nos reste do antigo mundo
clássico. A morte de Jesus é o acontecimento mais revolucionário de que se tem
memória no mundo ocidental, talvez no mundo inteiro. Assassinado como
inconcebível crueldade, pregado numa cruz, supremo suplício que desqualifica
definitivamente uma pessoa (segundo opinião generalizada da época), Jesus prova
que o débil pode se converter em poderoso por meio da suprema humilhação, que a
concepção igualitária e fraterna pode se tornar realidade. Revolução em estado
puro, a matança do ‘gen’ darwinista que existe no ser humano, revolução que
contesta de modo frontal a ideia que o forte destrói o fraco e desse modo
melhora a espécie humana, como ensina certa ciência baseada na ‘evolução das
espécies’. A vida de Jesus, pelo contrário, demonstra que a espécie humana
melhora quando o forte se curva diante do fraco e lhe dá a mão, a mão do bom
samaritano. Aqui, a rigor, não se trata de fé ou de religião, mas de princípios
éticos. O cristianismo bem entendido constitui a transformação mais importante
da consciência humana no decurso da história ocidental (talvez da história em
geral). Eis o que, vinte anos após a morte de Jesus, entende o fariseu Paulo de
Tarso, quando solta o grito: ‘Ele ressuscitou’. Grito nascido de uma
experiência de pessimismo otimista: da morte nasce a vida, do
sofrimento nasce o espírito revolucionário, das injustiças sofridas por Jesus
de Nazaré nasce um dos movimentos mais revolucionários da história da
humanidade: o cristianismo.
Sim, o pessimismo
otimista constitui a maneira sólida e cristã de ser otimista,
como escreve Helder Camara.
Nenhum comentário:
Postar um comentário