O Jornal On Line O PORTA-VOZ surgiu para ser o espaço onde qualquer pessoa possa publicar seu texto, independentemente de ser escritor, jornalista ou poeta profissional. É o espaço dos famosos e dos anônimos. É o espaço de quem tem alguma coisa a dizer.

quarta-feira, 15 de julho de 2020

O PESSIMISMO OTIMISTA DE HELDER CAMARA


 


Por Eduardo Hoornaert

 

Em sua Carta Circular de 7-8 de março de 1964, Helder Camara escreve os seguintes versos:

 

O pessimismo otimista

Me parece

A maneira sólida e cristã

De ser otimista (Volume I, Tomo I da publicação das Cartas pelo Cepe, Recife, p. 411).

 

O que significam essas palavras?

 

1. Quem lê o texto corrido das Cartas de Helder Camara, só encontra textos animadores e motivadores, mas não se dá o mesmo com os poemas inseridas em ditas Cartas. Ali, não raramente, aparece um Helder irrequieto, angustiado e mesmo pessimista.  Uns meses antes dos versos acima citados, em final de outubro de 1963, ele escreve:

 

Se uma sombra de angústia

Me visita de repente,

É ao passar nas terras secas

Nos desertos

Onde um poço no oásis

É o sonho

Dos homens e dos camelos

Tantas vezes seduzidos

Pelas miragens (Carta Circular 21-22/10/1963, I, I, pp. 220-221).

 

E pouco depois de escrever sobre o pessimismo otimista, ele pede a Deus de não se ofender com seus sentimentos negativos:

 

Tu te ofendes

Se eu Te disser

Que o mundo surge aos meus olhos

Informe,

Dolorido,

Inacabado? (Carta Circular 3-4/04/1964, I, I, p. 390).

 

No início de 1965, preparando-se a viajar a Roma para a última Sessão do Concílio Vaticano II, Helder se premune:

 

Há instantes

Em que os ouvidos

Devem estar

Juntinho dos olhos.

 

Há instantes

Em que os olhos

Devem estar

Distantes, muito distantes,

Dos ouvidos (Carta Circular 1-2/03/1965, II, II, p. 236).

 

Como se fosse um aguilhão, ele sente a mesquinhez, o medo, a reticência, enfim, os sentimentos que ele espera encontrar em Roma. Ele procura se livrar do alçapão traiçoeiro:

 

Quando se livra um pássaro

Do alçapão traiçoeiro

Em que caiu.

Ele sai espantado,

Assustadiço,

Mas incólume e feliz (ibidem, p. 237).

 

Pássaro incólume e feliz, ele encontra, no final do Concílio, uma oportunidade de extravasar o que sente diante da assembleia mundial de bispos, que já dura quatro anos. Quem oferece, inesperadamente, a oportunidade, é o próprio amigo Papa Paulo VI. Em meados de novembro 1965, poucos dias antes da solene encerramento do concílio, ele pede ao Bispo brasileiro  sugestões para as cerimônias finais.

Helder empenha-se com tanto afinco na tarefa de preparar tais ‘sugestões’ que nem tem tempo para participar da assinatura do Pacto das Catacumbas, do qual foi um dos principais arquitetos, no dia 16 de novembro, com os amigos do Grupo da Pobreza.

Cobertas pelos mais efusivos protestos de atendimento filial ao Papa, as Sugestões para o Encerramento do Concílio são, na realidade, uma ‘obra de malandro’, uma paródia, a expressão irônica do pessimismo que afeta Helder.

Ele propõe que o Papa se disponha a uma série de diálogos, preces, encontros, ao longo dos sete últimos dias do Concílio, ou seja, entre os dias 2 e 8 de dezembro de 1965. O programa se iniciaria, no dia 2, por um Diálogo do Santo Padre com um grupo de Ateus, em homenagem a todos os que têm fome e sede de verdade, na Biblioteca do Vaticano; no dia seguinte uma Prece ecumênica com os Hinduístas na Pinacoteca do Vaticano; no dia 4, Prece ecumênica com os Budistas no Museu do Vaticano; no dia 5, Um Encontro inesquecível, que dê oportunidades excepcionais ao Espírito Santo, em uma Sala dominada pela figura de Abraão ou da Virgem (aqui talvez um encontro com muçulmanos, pela alusão à figura de Abraão);  no dia 6, Prece ecumênica com os Judeus, na Antiga Sinagoga de Roma, transformada em Igreja católica, ou em Sala dominada pela figura de Moisés; no dia 7, Vigília Bíblica com os Observadores não católicos, na Basílica de São Pedro;  finalmente, no dia 8, Santo Padre, daríeis permissão para que, sob Vossa autoridade e convosco, o Concílio canonizasse, publicamente, o Papa João XXIII, na Praça de São Pedro? (Carta Conciliar 6-7/11/1965, I, III, pp. 215-216).

 

Pura paródia: Helder declara - sem mais nem menos - que o Concílio falhou. Não conseguiu nem acenar ao que pertence ao âmago do cristianismo: o amor acima de quaisquer clausuras e divisões. Um papa que abraça ateus, hinduístas, budistas, islamitas, judeus e não-católicos nada mais faz que seguir o ensinamento de Jesus. Mas isso é impossível em Roma 1965. Daí o pessimismo de Helder. Ele sabe perfeitamente que o Papa não vai fazer nada do que sugere: sei que o Santo Padre não vai poder fazer nada disso. Mas sinto necessidade de apresentar-lhe estas sugestões que, no íntimo, ele gostará de receber (ibidem. p. 215)O Papa bem que gostaria de seguir Jesus, mas não o consegue. Melhor ir ao circo: hoje - não se espantem - pretendo, às 16 horas, ver o Circo Orfeu. Preciso mergulhar no mundo das crianças: elas acreditam no impossível. Pois é disso que se trata: propor o impossível. E é continuando a insistir no impossível que Helder, teimoso, ainda acrescenta: Talvez, Santo Padre, o discurso de encerramento seja a hora providencial para dizer que, permanecendo amigo de todos os povos e justamente para sê-lo sempre mais, pensais em despedir-vos do Corpo Diplomático e em trazer de volta os Vossos Núncios (ibidem, p 215). E então termina se desculpando pela franqueza: Santo Padre, a única escusa para esta Carta é reafirmar que ela é um gesto de puro amor. Muito filialmente em Jesus Cristo (ibidem, p. 216).

O texto vai imbuído de pessimismo, e mesmo assim há um vislumbre de otimismo na alusão ao fato que o Papa, no íntimo, gostará de receber as sugestões do intrometido Bispo Auxiliar do Rio de Janeiro (ibidem, p. 215). 

 

Não é só a assembleia de bispos que entristece Helder. É também, e talvez de modo mais angustiante, a situação em que vive a maioria da população de Recife, a cidade à qual foi enviado como Arcebispo em 1964:

 

Ah! Como são tristes meus dedos,

Arrancarão, instintivamente, do violão,

Canções magoadas.

Modelarão na argila

Bonecos severinos (do poema ‘Vida e morte severina’, do poeta pernambucano Cabral de Melo)

De olhares angustiados

E sorrisos tristes (Carta 22-23/3/1966, III, I, p. 155).

 

O Bispo vai assistir ao filme ‘Zorba, o grego’, e volta entusiasmado com a ‘dança do fracasso’ de Antony Quinn.  Mas a chuva que cai abundante sobre os mocambos de Recife o angustia:

 

Chuva, dá um jeito

De abrir goteiras

Em todo o meu corpo,

De gelar meus ossos,

De alagar a minha alma.

Mas deixe em paz

Os mocambos de minha gente

Que precisa descansar

Da realidade triste

E esquecer no sono

A fome impertinente (Carta 20-21/3/1966, III, I, p. 204),

 

Não aguenta ver tanta miséria em seu redor:

 

Já não aguento, Pai,

ver tanta miséria, ouvir tanto lamento.

Sabes que comida perde, dia a dia,

qualquer interesse

para quem carrega nos olhos

as imagens que eu carrego,

para quem guarda nos ouvidos

as vozes que registro para sempre? (Carta 18.19/2/1965, II, II, p. 193).

 

2. Diante desses acessos de pessimismo por parte de Helder Camara, algumas figuras paradigmáticas da literatura nos vêm à memória. Se Helder, no Concílio, não canta qual pássaro preso em gaiola, mas se livra do alçapão, como então caracterizar seu comportamento ao longo do Concílio Vaticano II? Imagens alucinantes o acometem ao ver a corte romana em torno do papa, as procissões, as cerimônias. Helder vê o Imperador Constantino atravessando a Basílica de São Pedro, o Papa jogando sua Tiara no Rio Tibre e distribuindo as riquezas do Vaticano com os pobres de Roma e indo morar num apartamento numa das pracinhas da cidade. 

 

É aqui que emerge a figura de Dom Quixote. Aliás, vale lembrar que diversos observadores da cena conciliar reparam, com sentimentos diversos, algo ‘quixotesco’ nos comportamentos e nas inciativas do Bispo Auxiliar de Rio de Janeiro. Quando Helder ouve falar disso, ele não se esquiva, mas pelo contrário, demonstra que gosta da comparação, ao ponto de escrever que ela lhe dá um sentimento de maior aproximação com Jesus Cristo:

 

Quem não sabe

que o verdadeiro Dom Quixote

se chama Jesus Cristo? (Carta Circular 1-2/10/1969, IV, IV, p. 135).

 

Onde reside mesmo o segredo do romance de Cervantes, que conquistou milhões de pessoas ao longo desses cinco últimos séculos, em 2002 foi escolhido melhor obra de ficção de todos os tempos pelo Clube Norueguês de Livros e conta com a admiração geral? Como entender que Dom Quixote é o livro mais difundido do mundo, depois da Bíblia, que conta com nada menos de 450 milhões de cópias impressas, em cinquenta línguas e é considerado, por escritores como o argentino Jorge Luís Borges, um ‘patrimônio da humanidade’? O ‘cavaleiro da triste figura’, que anda desolado pelos campos da Espanha, guarda na alma a amarga ironia em ver que os sonhos mais lindos esbarram na dura realidade. Um pessimismo resiliente perpassa sua alma: não há lugar para o puro amor, o puro compromisso com um mundo melhor. O sonho impossível.

De outro lado, na opinião de muitos comentaristas, o segredo do sucesso de Cervantes está no fato que Quixote, apesar de não se conformar com a realidade em seu redor e cultivar - desse modo – o pessimismo, nunca abandona seu supremo sorriso, sua refinada ironia, seu otimismo igualmente resiliente. O romance de Cervantes constitui, por conseguinte, um excelente exemplo do pessimismo otimista que anima pessoas como Helder Camara.

 

Emerge também a figura do Príncipe Michkin, do romance ‘O Idiota’ de Dostoievski. Inadaptado, ridicularizado, desajeitado, um príncipe fracassado e ‘decaído’. Sua compaixão sem limites por pessoas indefesas é uma idiotice. Enquanto todos o consideram ingênuo, ele é capaz de descobrir a intimidade das pessoas por um simples olhar. A sociedade não suporta tanta pureza e decide que o sanatório é o lugar apropriado para o Príncipe Michkin. Raskolnikov, do romance ‘Crime e Castigo’ (do mesmo escritor) contracena. Estudante talentoso, ele se sente chamado a colaborar com a melhoria de seu país. Cultiva grandes planos, mas não tem dinheiro para realizá-los. Ora, ele vive numa pensão mantida por uma velha senhora, uma agiota que tem muito dinheiro e pouca cabeça. Para Raskolnikov, ela é uma ‘pessoa ordinária’, descartável, enquanto ele é extraordinário, pode quebrar regras estabelecidas em prol do avanço humano. Assombrado com sua imensa responsabilidade, Raskolnikov planeja e concretiza o assassinato da velha agiota e consegue se apropriar de seu dinheiro. Isso o faz extraordinário, acima de leis e costumes, sentimentos e afetos banais (como amar um neto, por exemplo). Ele vive num plano superior, não teme infringir regras estabelecidas e contradizer opiniões generalizadas. Enxerga longe, faz parte do seleto grupo de sujeitos que são capazes de mudar o rumo da história. E nisso se torna um criminoso. Aí acontece o inesperado. A própria consciência de Raskolnikov passa a se insurgir contra ele e o empurra, inexoravelmente, à autodestruição. A consciência sufoca Raskolnikov, esfacela seu íntimo, causa doença. No final do romance, ele chega a vislumbrar sua própria baixeza, sua desumanidade, e perde o mínimo senso de respeito por si mesmo. Sua única âncora de salvação é o amor de uma mulher. 

 

Eis três figuras literárias que me vêm à memória ao me aprofundar nos escritos de Helder Camara: Dom Quixote, Michkin e Raskolnikov.  Os dois primeiros por vivenciar o pessimismo otimista de Helder, o último vivenciando um otimismo ilusório que leva ao crime, ao seguir impulsos egocêntricos de poder e glória.

 

3. Podemos cavar mais fundo. Em última instância, o pessimismo otimista de Helder remete a uma figura que apareceu no palco da história numa das periferias do Império Romano, dois mil anos atrás: Jesus de Nazaré. Lembro que o próprio Helder se compara com Quixote e Jesus:

 

Quem não sabe

que o verdadeiro Dom Quixote

se chama Jesus Cristo? (Carta Circular 1-2/10/1969, IV, IV, p. 135).

 

Enquanto o Evangelho de Mateus relata que a última exclamação de Jesus, na cruz, expressa um profundo pessimismo (‘meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?’), no Evangelho de João (Jo 19, 30), Ele se mostra otimista: ‘cumpri a missão’ (em grego ‘tetelestai’, do verbo ‘teleô’: terminar uma tarefa, cumprir um compromisso). Jesus quase não aguenta o sofrimento físico, mas no íntimo da alma está satisfeito com o percurso realizado. Vivencia um pessimismo otimista.

Difícil exagerar quando se trata de avaliar a importância de Jesus na história da humanidade. Enquanto, antes dEle, os líderes mais expressivos do mundo, como César, Augusto e Xerxes, além de tantos criadores de grandes impérios como o assírio, babilônico, egípcio, persa, grego e romano, trabalham a vida toda para humilhar, submeter, escravizar e submeter (‘Dominare populos memento, Roma’), o camponês da Galileia vivencia exatamente o contrário. Ele simplesmente parte da ideia bíblica, já expressa no primeiro capítulo do Livro Gênesis, que todas as pessoas humanas são criadas ‘segundo a imagem e semelhança de Deus’ e por conseguinte merecem o respeito que deve reinar entre iguais. Uma ideia revolucionária, que não se encontra nem nas ordenanças gravadas na ‘stèlè’ de Hamurabi, nem em algum documento ou monumento que nos reste do antigo mundo clássico. A morte de Jesus é o acontecimento mais revolucionário de que se tem memória no mundo ocidental, talvez no mundo inteiro. Assassinado como inconcebível crueldade, pregado numa cruz, supremo suplício que desqualifica definitivamente uma pessoa (segundo opinião generalizada da época), Jesus prova que o débil pode se converter em poderoso por meio da suprema humilhação, que a concepção igualitária e fraterna pode se tornar realidade. Revolução em estado puro, a matança do ‘gen’ darwinista que existe no ser humano, revolução que contesta de modo frontal a ideia que o forte destrói o fraco e desse modo melhora a espécie humana, como ensina certa ciência baseada na ‘evolução das espécies’. A vida de Jesus, pelo contrário, demonstra que a espécie humana melhora quando o forte se curva diante do fraco e lhe dá a mão, a mão do bom samaritano. Aqui, a rigor, não se trata de fé ou de religião, mas de princípios éticos. O cristianismo bem entendido constitui a transformação mais importante da consciência humana no decurso da história ocidental (talvez da história em geral). Eis o que, vinte anos após a morte de Jesus, entende o fariseu Paulo de Tarso, quando solta o grito:  ‘Ele ressuscitou’. Grito nascido de uma experiência de pessimismo otimista: da morte nasce a vida, do sofrimento nasce o espírito revolucionário, das injustiças sofridas por Jesus de Nazaré nasce um dos movimentos mais revolucionários da história da humanidade: o cristianismo.

 

Sim, o pessimismo otimista constitui a maneira sólida e cristã de ser otimista, como escreve Helder Camara.

 


Nenhum comentário:

Postar um comentário