LEONARDO BOFF
O
intrusão do Covid-19 trouxe grandes questionamentos para a existência humana.
Para frear sua propagação se impuseram várias medidas restritivas que
provocaram impaciência, indignação,desesperança e fatalismo. Mas também criaram
a oportunidade de fé, de esperança e sobretudo de reflexão sobre o sentido de
nossa presença neste planeta e de um aprendizado para a vida que deve seguir
melhor, mais terna e fraterna.
O vírus
invisível desmascarou a arrogância do ser humano moderno que se julgava
um pequeno deus, capaz de, com a tecnociência, dominar as
forças da natureza e submetê-las ao aeu serviço. O Covid-19 demonstrou que
somente nos assenhoreamos da natureza se obedecermos a ela. Não somos
donos mas parte da natureza junto e não em cima dos demais seres abraçados como
irmãos e irmãs.
O
Covid-19 nos revelou como seres expostos à imprevisilidade e à vulnerabilidade,
quer dizer, não dominamos as condições que garantem ou ameaçam nossa vida.
Quem, afora alguns epidemiologistas, como um dos maiores, David Qammen,
previu a chegada ameaçadora do vírus? São poucos países que tem um SUS (Sistema
Único de Saúde) como nós no Brasil. Não o tinham os USA, a Itália, a Espanha, o
México entre otros. Ademais somos seres que não possuem nenhum órgão
especializado (Mangelwesen de Arnold Gehlen)
que assegure a nossa existência nem possuímos um habitat próprio, como cada espécie da natureza
possui. Precisamos construir pela interação com a natureza e pelo trabalho o
nosso habitat, vale dizer, um lugar hospitaleiro no qual
podemos viver com sem maiores ameaças e em paz.
O vírus
ataca as pessoas, ricas e pobres, as classes, as religiões e todas as nações do
planeta. As armas de destruição em massa sobre as quais se funda o poder dos
impérios atuais em busca de hegemonia mundial e até de dominação sobre outros
povos, se tornaram ineficazes e até ridículas. O que nos está salvando não são
os mantras da cultura do capital (o lucro, a concorrência, o individualismo, o
assalto aos bens e serviços da natureza, o domínio do mercado sobre a
sociedade) mas os valores quase ausentes nesse sistema capitalista e
neoliberal: a centralidade da vida, a interdependência entre todos, a
solidariedade, a generosidade, o cuidado de uns para com os outros e para com
os bens naturais escassos, as relações sociais mais amigáveis contra a
voracidade insaciável do mercado, um estado social que cuida das demandas
básicas de seus cidadãos.Eis um aprendizado que estamos fazendo e que deve ser
internalizado e fundar um novo paradigma de comportamento, para que não se
traduza apenas por alguns atos mas se torne uma atitude permanente,
pois é essa que transforma.
A
indignação e a impaciência são compreensíveis, pois somos seres sociais.
Não poder conviver, abraçar e beijar nossos entes queridos e amigos é
penoso e entristecedor. Assumimos as renúncias como o cuidado para conosco
mesmos e como solidariedade para com os demais para não contaminá-los ou nós
mesmos não sermos contaminados. A indignação importa que se transforme em
empatia para os que sofrem, seja nos hospitais, seja com as famílias que
perderam seus entes queridos.
O
fatalismo significa aceitar um fato como inevitável face ao qual nada podemos
fazer. Essa é uma visão negacionista que nos leva à inércia e ao tédio.
Esquece que o ser humano foi criado criador; possui dentro de si energias
escondidas que são mais fortes que a dureza dos acontecimentos. Podemos
resistir a eles, evitá-los e, mesmo acontecidos, sempre é possível tirar lições
deles e assim superá-los. Nada é fatal nesse mundo. Somente o é a morte. Mas a
morte não precisa significar o fim de nossa peregrinação mas o momento de
transfiguração, o exercício da suprema liberdade ao não permitir que a vida nos
seja tirada, mas entregá-la a um Maior e despedir-se de te mundo, agradecidos
pelo fato de termos existido. É inspiradora a última palavra de Santa Clara, a
companheira de São Francisco de Assis: ”Senhor, te agradeço por me teres
criado”. Inclinou a cabeça ao lado e expirou e assim caiu nos braços de
Deus-Pai-e-Mãe de bondade que a esperavam.
Face à
avassaladora pandemia urge suscitar a fé e alimentar
a esperança. Fé, em seu sentido bíblico, significa mais
que acolher verdades e aderir a doutrinas. É antes de tudo uma confiança
em Alguém que acompanha nossos passos, conhece todos os nossos altos e
baixos, que sabe do pó do qual somos feitos e tem piedade de nós. Por isso,
como diz de forma consoladora, o salmo 103:”Ele não
está sempre acusando nem guarda rancor para sempre; como um pai sente compaixão
por seus filhos, assim o Senhor tem compaixão por aqueles que a Ele se confiam
porque conhece nossa natureza e se lembra de que somos pó”(v.9-14). Ter fé
significa que a vida, por mais penosa que seja, tem sentido e vale a pena
assumi-la e amá-la. Hoje a assumimos em sua fragilidade e confiamos que esse
Alguém pode se compadecer de nós e nos salvar do vírus letal.
A esperança nos faz compreender que o invisível é parte do visível. A realidade
empírica e dada não é toda a realidade. Ela esconde algo invisível que pertence
à nossa condição humana: as incontáveis possibilidades e virtualidades
escondidas dentro de nós. Podemos desentranhá-las inventar uma solução nova aos
nossos problemas. É a esperança que nos permite sonhar e pensar em mundos ainda
não vividos e ensaiados mas que somos desafiados a moldá-los. Enquanto houver
esperança, jamais existirão becos sem saída. Pela esperança nos convencemos a
nós mesmos de que o Covid-19 não representará o “Next Big
One”, o grande vírus terminal, contra o qual nenhuma vacina seria
eficaz e que poderia liquidar grande parte da biosfera e levar milhões da
humanidade a um desfecho trágico.
Ainda
temos futuro. Nascidos no coração das grandes estrelas vermelhas, há bilhões de
anos, seguiremos irradiando. Alimenta nossa esperança uma das últimas frases
da Laudato Si: como cuidar da Casa Comum do Papa
Francisco:”Caminhemos cantando; que as nossas lutas e a nossa preocupação por
este planeta não nos tirem a alegria da esperança”(n.244).
Leonardo
Boff é filósofo e teólogo e escreveu: O doloroso parto da Mãe Terra:
uma sociedade de fraternidade sem fronteiras e de amor social a
sair em breve pela Vozes 2021.
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