FREI ALOÍSIO FRAGOSO
(10/04/2021)
Uma das primeiras vítimas fatais
"vip" do coronavirus foi o Diretor Geral do Banco Santander, em
Portugal. Entre lágrimas, sua filha comentou: "somos uma família
milionária, mas meu pai morreu sozinho, sufocado, buscando algo que é gratuito,
o ar. O dinheiro ficou em casa".
Este fato ilustra bem uma lição que
aprendemos sobejamente nestes 12 meses de pandemia: que há coisas necessárias e
coisas supérfluas. Naquele momento trágico, milhões de dólares eram bens
supérfluos, o único necessario era o oxigênio, que a natureza oferece
gratuitamente.
A força simbólica deste exemplo
desdobra-se e multiplica-se em dimensão global. Todos nós, cidadãos e cidadãs,
moradores deste planeta terra, somos herdeiros congênitos de direitos
inalienáveis. O primeiro deles: ter acesso aos bens que nos permitam viver com
liberdade e dignidade. Somos movidos por necessidades e desejos. A satisfação
dos desejos torna a vida agradável; a satisfação das necessidades torna a vida
possível. Para a vida tornar-se agradável tem antes que ser possível. As
necesidades tem primazia sobre os desejos. Daí a declaração do Papa Paulo VI,
que pegou fogo na consciência de muita gente: "Ninguém tem direito de
reservar para seu uso exclusivo bens que lhe são supérfluos, enquanto ao seu irmão
falta o indispensável para viver" (Populorum Progressio).
Grande parte das coisas que carregamos ou
acumulamos são coisas que sobreviveram ao seu uso previsto. Não querer
separar-se delas constitui pobreza de espírito. Os antigos latinos chamavam
esta atitude de "fascinatio fugacitatis" (fascinação pelas coisas
fugazes). Um famoso místico do séc. XIII, Rumi, chamava-as de veneno,
"qualquer coisa além do que precisamos é veneno."
Houve sempre, em todos os tempos, povos e
crenças, espíritos superiores que optaram pelo mínimo necessário em troca do
devotamento pleno a Causas mais nobres. Assim o fizeram o católico Francisco de
Assis, o protestante Albert Schweitzer, o hinduista Mahatma Gandhy, o ateu
Oscar Niemeyer, a universal e ecumênica Teresa de Calcutá, e tantos outros.
Eles não foram impelidos por esta ou
aquela Religião e sim por uma consciência profunda da vida real, que os levou a
perceber a tensão entre o supérfluo e o necessário: tudo quanto adquirimos,
perdemos, quanto mais se vive mais se perde, e, do que acumulamos, o que vai
restar como legado pessoal? Nada, senão o que fomos. Bem dizia o poeta Fernando
Pessoa, "a vida é breve, a alma é vasta, ter é tardar".
Estes princípios aplicam-se também ao
campo da prática religiosa. Que coisas lhe são supérfluas? - Supérfluas são as
horas seguidas de louvor a Deus, como pretexto para o não querer ir ao encontro
dos que precisam de um bom samaritano ou de um simão cireneu. Supérfluo é o
sentimento corrosivo do remorso, por causa dos pecados, em vez do
arrependimento sincero e libertador. Supérflua é a cruzada turbulenta em favor
da abertura dos templos e igrejas, indiferente à saúde dos templos vivos de
Deus, que são as pessoas. Assim como também é supérfluo o ativismo exarcebado, despreocupado
com o alento da espiritualidade.
Neste embate sem fim entre o necessário e
o supérfluo, Jesus enfrentou situações extremamente conflitivas. Mais de uma
vez Ele transgrediu leis e tradições, quando se tratava de defender a
prioridade absoluta, o dom da vida. Pressionado e ameaçado pelas autoridades
religiosas, Ele explodiu: "hipócritas, com as vossas tradições, anulais o
verdadeiro mandamento de Deus. A lei foi feita para o homem e não o homem para
a a lei" Mc.2,27.
Então, que cessem as palavras supérfluas e
falem as obras necessárias. Amém.
Frei Aloísio
Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor
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