FREI ALOÍSIO FRAGOSO
(02/04/2021)
Para desconcerto geral, há um virus pior
do que o COVID, infectando o corpo e a alma desta nossa "pátria amada
Brasil". Suas causas são bem conhecidas, seus efeitos, bem visíveis para
quem tem olhos pra ver e mente pra pensar. A fome.
Nestes dias, nós cristãos estamos
revivendo a Semana Santa. Somos convidados a contemplar a Cruz do Calvário.
Considerando que "completo em minha carne o que faltou à sua Paixão"
cf. Col. 1,24 ss, acrescentaremos às 7 Palavras de Jesus na Cruz, mais uma:
"tenho fome". Sim. A fome Dele hoje está na fome de todos os
famintos, desamparados e humilhados.
Reflitamos a partir de um fato real. Há
poucos dias, recebi um s.o.s. de moradores de Bola na Rede:"padre, arranje
umas cestas básicas, pois já começamos a vender os objetos da nossa casa, para
comprar comida". No primeiro momento, uma pessoa amiga e sensível fez
doação de grande quantidade de um alimento saudável e nutritivo: macaxeira. No
dia seguinte, a coordenadora da distribuição, irmã de Fé e Luta, me mandou uma
mensagem, via wapp: "frei, nunca vi o povo tão feliz por causa de
macaxeira". Confesso que senti uma alegria triste. Alegria, por razões
óbvias, tristeza, por razões subjacentes.
Quando um povo vive tamanha felicidade por
3 kg. de macaxeira (o que coube a cada família) é sintoma de que alguma coisa
vai mal. Me senti desafiado a decifrar enigmas: o que é a fome? A que leva a
dor da fome?
Lembrei um pensamento do poeta latino
Virgílio, aprendido no Seminário: "malesuada fames", a fome é má conselheira.
Não! Ela é péssima conselheira. E eu que pensava diferente, curvo-me a esta
verdade: ela, a fome não produz sentimento de justa revolta, gerador
de mudanças sociais, ao contrário, produz
passividade e subserviência. Se hoje alguns gritam de felicidade por conta de 3
kg. de macaxeira, amanhã, por motivos semelhantes, farão fila pra beijar a mão
do opressor. Não tenho mais dúvida, a fome é arma do diabo. E como o diabo não
precisa andar armado, ele a entrega aos opressores deste mundo. O Sistema Econômico
Neoliberal a utiliza com o fim de
submeter os pobres ao mais vil e absoluto controle: o que obriga a escolher
entre viver ou morrer.
Daí me irmanei com outros personagens
históricos de outros tempos e lugares deste mundo desigual. Mahatma Gandhy, um
dos homens mais santos que este mundo já conheceu, profundamente religioso. Um
dia ele foi interpelado por Rabindranath Tagore, maior poeta da Índia, prêmio
Nobel de literatura. Este questionou sua pregação obsessiva e monocórdia contra
a fome de seus compatriotas. Convidou-o a olhar também para o pássaro que
canta, ao romper da aurora, sem perguntar por alimento. Gandhy respondeu,
admitindo, democraticamente, que outros se ocupassem em cuidar de pássaros
debilitados, ou de cantar a poesia da vida, mas "não se pode esperar que a
salvação de um povo venha da arte, quando milhões estão a precisar apenas de uma coisa: comida. Se, em minha
volta o povo definha de fome, só me é permitida uma ocupação: alimentá-los".
E acrescentou um dado da sua fé: "a um povo que sofre de fome e
desemprego, Deus só pode aparecer de uma forma: como trabalho e garantia de
comida".
Não sendo cristão, Gandhy nos chama
atenção para um Deus ecumênico. Ainda que sejam diversos os caminhos da Fé,
para todos vale o mesmo princípio: "se alguém disser que ama a Deus, a
quem não vê e não ama o irmão, a quem vê, é mentiroso" Cf.1 Jo.4, 20-21.
Nestes dias da Semana Santa, ao acompanhar
os passos da Via Sacra, não choremos por Ele ("não chorem por mim, mas por
vocês e seus filhos" Jo. 28,48.) Ele está na glória do Pai. Celebremos sua
Paixão e Ressurreição e, logo a seguir, voltemos para os caminhos onde Ele se
encontra desfigurado em qualquer pessoa torturada pela maldita fome. Jesus não
disse "teu irmão teve fome...." mas sim "eu tive fome e me deste
de comer" Mt.25,35. Amém.
Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da
Tenda da Fé e escritor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário