Frei Betto
Entramos
na Semana Santa. Todo o mundo, o Brasil de modo especial, vive há mais de um
ano em plena Sexta-Feira da Paixão: quase 3 milhões de mortos pela Covid, dos
quais mais de 300 mil em nosso país.
Dói a
incerteza da doença em milhões de infectados; dói nas famílias dos mortos; dói
a ausência de velórios; dói nos trabalhadores da saúde que, exaustos, sabem que
não podem fazer milagres na falta de insumos, remédios, oxigênio e leitos; dói
no bolso dos comerciantes que veem seus negócios falidos; dói no risco
cotidiano enfrentado pelas pessoas obrigadas a sair de casa para trabalhar; dói
ao viajar no transporte coletivo lotado; dói na falta de crédito facilitado a
quem vê o seu empreendimento fechar, e dói por não ser permanente e suficiente
o auxílio emergencial a tantos que precisariam ficar em casa e, ao mesmo tempo,
se alimentar, pagar aluguel, e as contas de água, luz, telefone etc.
Jesus
sofre na dor dos enfermos e de suas famílias; no desamparo de quem vive nas
ruas, não tem acesso a recursos sanitários e atendimento de saúde; na
expectativa de uma vacina que, a conta gotas, demora a chegar para a maioria da
população.
No
Brasil, a maioria é cristã. Cristãos avulsos, sem vínculos paroquiais ou
comunitários. Por isso, profanamos a Semana Santa. Em vez do lava-pés na
quinta-feira, lavamos a alma em dúzias de cerveja e o corpo em mares e
piscinas. Em vez da memória do Senhor morto na sexta-feira, o churrasco no
quintal e a sofreguidão de quem acredita que felicidade é a soma de pequenos
prazeres. Em vez da Páscoa, a mais importante festa cristã, um domingo de lazer
no qual se espera apenas que o Sol ressuscite dentre as nuvens e nos conceda a
glória de seu brilho. E, muitas vezes, promovendo aglomerações que, sutilmente,
introduzem em nossas casas esta indesejada convidada que, nos dias que correm,
costuma se manifestar dias depois de nossas confraternizações com familiares e
amigos: a morte.
Os fatos
históricos celebrados pela Igreja na Semana Santa fazem parte dos arquétipos
que regem a nossa cultura ocidental. Olvidar-se que, no século 1, Jesus de
Nazaré foi perseguido, preso, torturado e assassinado na cruz por "passar
a vida fazendo o bem", como sublinham as Escrituras, é perder a própria
identidade. Sem paradigmas e referências, invertemos os valores. Trocamos a
religião pelo consumo, abraçando inclusive uma religiosidade prêt-à-porter,
de quem busca na igreja apenas o que convém à própria segurança psicológica.
Nenhuma preocupação com os pobres, nenhuma fome de justiça, nenhuma entrega à
oração. Nada disso exige que se cumpra o fundamental: amar o próximo como a si
mesmo. O que, nessa conjuntura, se traduz em solidariedade aos que padecem
doenças, fome, falta de recursos mínimos para saldar contas triviais.
Abraçar o
caminho de Jesus é ver no próximo a face de Cristo, sobretudo naqueles com quem
ele se identificou: "tive fome... tive sede... fui oprimido..." (Mateus 25,31).
Que transtorno! Então terei de encarar essa criança de rua que estraga a
paisagem da janela do meu carro como se visse o Menino Jesus? Terei de consolar
familiares de pessoas doentes e pagar o salário da faxineira ainda que ela não
venha trabalhar devido à pandemia?
Heloisa
Vinhas, brasileira de 23 anos que tentava vida melhor nos EUA, em março de
1996, ao atravessar uma rua de Los Angeles, foi atropelada pelo carro de uma
motorista irresponsável, que fugiu sem prestar socorro. Atirada no asfalto da
via preferencial, Heloísa corria o risco de ser morta por outros veículos.
Porém, um jovem e famoso ator, Tom Cruise, que passava pelo local, manobrou seu
Porsche de modo a proteger o corpo da moça e chamou a equipe de socorro. Em
seguida, acompanhou Heloísa ao hospital e disse ao enfermeiro Jeffrey Furrows:
"Sou Tom Cruise e quero que esta mulher receba o melhor tratamento
possível. Eu pago a conta." A estimativa ultrapassava 20 mil dólares. Dias
depois, ele retornou para visitar Heloísa.
Tom
Cruise jamais deve ter imaginado que, um dia, faria o papel, na vida real, de
um dos mais destacados personagens bíblicos: o bom samaritano. Conta Jesus, no
capítulo 10 do evangelho de Lucas (versículos 25 a 37), que "um homem ia
descendo de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos dos assaltantes, que lhe
arrancaram tudo e o espancaram. Depois foram embora e o deixaram quase morto.
(...) Um samaritano, que estava viajando, chegou perto dele e teve compaixão.
Aproximou-se, fez curativos, derramou óleo e vinho nas feridas. Depois colocou
o homem em seu próprio animal e o levou a uma pensão, onde cuidou dele. No dia
seguinte, pegou duas moedas de prata e as entregou ao dono da pensão,
recomendando: "Tome conta dele. Quando eu voltar, pagarei o que tiver
gasto a mais."
Como
imitar Tom Cruise e o bom samaritano se perdemos a compaixão e a solidariedade?
Preferimos Jesus espetado no crucifixo da parede. Na vida real, ele e o bom
samaritano questionam nossas fantasias egocêntricas.
Infelizmente,
muitos de nós ainda pensam assim: “É Páscoa, mas não passo. Fico na minha.
Entregue ao ócio dos feriados. Se possível, vendo na TV um filme estrelado por
Tom Cruise. E não me peçam que pare o carro caso encontre um acidentado na
estrada. Sujaria tapetes e bancos, impressionaria as crianças, atrasaria a
viagem. Exceto se a fatalidade fizer com que o acidentado seja eu.”
Frei Betto é escritor, autor de “Diário de
quarentena – 90 dias em fragmentos evocativos” (Rocco), entre outros livros.
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