Kinno Cerqueira [1]
Tenho
a impressão de que a Bíblia é o livro menos lido no mundo. Alguém que esteja em
posse de certos dados estatísticos dirá, com toda razão, que incorro num
contrassenso. Afinal, a afirmação de que a Bíblia é o livro mais vendido,
distribuído e lido no mundo tornou-se proverbial em nosso tempo. E os
colportores incumbidos de salvar o mundo orgulham-se do sucesso de seu
trabalho...
Que
significado os estatísticos e colportores dão ao verbo ler? O mais simplório
(im)possível, é claro. Absolutamente seguros de sua insuperável precisão
conceitual, nomeiam de leitura a reprodução mecânica da combinação dos sons
silábicos que compõem as palavras do texto bíblico. Vamos rir ou chorar? Vocês
decidem.
Há
duas circunstâncias que frequentemente levam uma pessoa a entrar em contanto
com a Bíblia. A primeira é quando um evangelista/catequista lhe oferta uma
Bíblia durante um processo de investidas proselitistas. A segunda se dá quando
alguém, rompendo com o cristianismo de tradição católica, adere a uma igreja
protestante, onde recebe uma Bíblia ou é aconselhado a comprar uma.
Nos
dois casos, a Bíblia já aparece lida e interpretada. No primeiro, a pessoa
recebe a Bíblia como signo da verdade absoluta à qual é interpelada a
submeter-se. No segundo, como Palavra de Deus que lhe é dada como sinal de sua
supremacia frente a quaisquer expressões religiosas que ocorram fora do limiar
de sua nova igreja.
Não
raras vezes, apresenta-se um “plano de leitura” para que, no decurso de um ano,
as pupilas crentes conheçam a verdade absoluta, nas filigranas, da primeira à
última página, sílaba a sílaba. O critério para aferir a precisão da leitura é
o grau de concordância entre esta e a nefasta obtusidade do pastor da igreja. E
assim a leitura acontece, com aquela liberdade que é tão própria de marionetes
sob mãos de marionetistas.
A
minha proposta é que, a partir de hoje, não se diga mais que a Bíblia é o livro
mais lido no mundo. Não se exasperem comigo, senhores estatísticos,
colportores, evangelistas e pastores, pois eis que lhes proponho uma
alternativa mais honesta: a Bíblia é o livro mais silabado do mundo.
Ler
é um ato hermenêutico, ou seja, um processo interpretativo, e a liberdade lhe é
condição de genuína realização. Hipotecar a liberdade hermenêutica em função de
uma leitura “correta” é o mesmo que vendar os olhos para não errar o caminho.
Hipotecada a liberdade e vendados os olhos, resta fiar-se em decisões alheias.
A
leitura ocorre quando o leitor se assume como sujeito, isto é, quando o leitor
se emancipa em relação ao discurso do outro, libertando-se da condição de
subalterno, abjeto, dejeto. A leitura crente, que não passa de uma insossa silabação,
é um processo de afirmação da subalternidade, de adesão à obtusidade, de
embrutecimento do espírito, de suspensão do pensamento próprio, de sacrifício
das retinas no altar da obediência.
Até
quando se levará adiante tamanha brutalidade psíquica? Até quando se torturarão
as subjetividades sob o signo da Bíblia? Até quando quisermos. Até quando dissermos
que basta. Até quando retirarmos nossas cabeças de debaixo das solas que nos
esmagam. Até quando a rebeldia nos for mais doce que a obediência. Até quando
nossos olhos amarem mais a policromia do mundo que o preto e branco da
religião. Até quando ler for um salto de liberdade nos abismos do espanto
poético, da beleza que redime, da vida que se reticencia... Até quando a
ninguém for dada a última palavra.
[1]
Pastor batista, biblista e assessor do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos) para a
área de estudos bíblicos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário