Eis que de novo chega a Semana Santa reinando a pandemia com os males que a acompanham, obrigando-nos a fechar portas e portões, em debandada para salvar a própria pele! Na reclusão, perdendo fôlego e alegria de viver, batemos de frente com a angústia e o calafrio do risco eminente da morte se esgueirando para se aninhar nas profundezas de nosso ser.
Pouco a pouco janelas
e portas vão se abrindo, pois o alarme para alguns é falso, nada mais do que
uma gripezinha, que se afasta com tratamento precoce e, mais ainda, pelo poder
de Deus acima de tudo. Vamos pois, porta a fora, para tocar a vida. Afinal,
religião é religião; negócio é negócio. Como viver sem nossos botecos,
restaurantes, supermercados e shopping centers,
sem nossas festas, cultos e procissões?
Pe Dênis Cândido da SIlva
Nos templos e
igrejas, sinagogas e terreiros, como nos demais espaços sagrados, com nossos
ministros, guias espirituais, padres e pastores, ganhamos o céu sem perder a
terra! Tudo continua como dantes, uns com muito, outros com muito pouco e a
imensa maioria com quase nada! Sempre foi assim, é o normal da vida. Assim será
e Deus seja louvado!
Porém, o tempo
passa e o vírus vai ganhando mais força por causa de nossas falsas certezas.
Mais do que uma gripe, a peste avança penetrando a fundo em casebres e palácios,
uns morrendo à míngua, enquanto outros gozam de recursos que permitem
atravessar a tormenta. Gritos e alaridos, protestos são ensaiados para defender
a economia, enquanto a saúde despenca ladeira abaixo. O desespero bate nas
portas das casas, dos templos e hospitais. Os centros de poder; alicerçados na
falsidade de seus objetivos escusos e de alianças espúrias, permanecem omissos
e coniventes com o genocídio galopante.
Nas entranhas
degradadas da Mãe Terra, não mais fonte de vida, são gestados os vírus da peste
que devora crianças, jovens e velhos. O senhorio humano desvairado e insano,
rompeu a harmonia da Casa Comum. O tempo se esgota e nossa presença na Casa
Comum se torna cada vez mais insuportável. Apelamos para o milagre, quando a
resposta está com a ciência e com a consciência que exaltam e honram a
biodiversidade e a unidade do pluralismo das formas de vida em comunhão.
Desta forma,
confusos e perplexos, “provavelmente viveremos a Páscoa mais insólita de toda a
história cristã. Talvez, com exceção de alguns períodos de perseguição em
alguns países e em certas épocas da história, as maiores festas cristãs nunca
ocorreram sem celebrações públicas. Talvez não tenha havido até agora uma
Páscoa, numa tão grande parte do mundo, com as igrejas vazias e em muitos casos
fechadas” (Tomáš Halík, O Tempo das Igrejas Vazias,
ed. Paulinas, pp. 67-77).
Vamos, então,
celebrar a Páscoa?! Mas qual Páscoa? Onde e como? Assim como nos questiona o
teólogo tcheco Tomáš Halík, criado num regime ateu diverso do nosso, pretensamente
católico e evangélico, estamos dispostos a superar as barreiras ideológicas
para encontrar o caminho da fé em Deus que se revela identificado com os
descartados, deserdados e crucificados da civilização do ter, do poder e do
prazer?
Em plena crise
civilizatória, estamos sonhando com a volta à normalidade? Logo mais com meio
milhão de vidas ceifadas pela peste nutrida pelo descaso, deboche e omissão,
vamos continuar delirando alicerçados em nossas crendices e religiosidade? Ou,
rompendo com as amarras que nos escravizam, ousaremos passar pelo vale da morte
onde sepultaremos as caricaturas de nossa idolatria e de nosso modo de viver
que nos transformou em hóspedes insuportáveis na Casa Comum?
A pandemia
torna-se para nós Kairós, uma dádiva do Amor Misericordioso
que transforma a desgraça em graça! Muita coisa vai morrer e precisa morrer
para o amanhecer do novo. Páscoa é a celebração da Vida triunfando sobre a
Morte. Segundo Halík, “neste tempo, a fé de muitos crentes é sacudida, e também
muitos “não-crentes” começam a interrogar-se sobre questões fundamentais”
(Tomáš Halík, A Pandemia como Experiência Ecumênica.
Demolição e Reconstrução, 2020).
A Páscoa é uma
história de morte e ressurreição! Celebrar a Páscoa é uma decisão muito
exigente, com implicações e desdobramentos que mudam o curso da história, seja
a primeira reinando o Faraó, ou a de Jesus de Nazaré, que encerra a disputa
entre Jerusalém e Garizim, pois Deus se encontra e se revela em Espírito e na
Verdade da Vida; ou agora na pandemia, inaugurando uma nova civilização, em que
tudo será novo ou não será!
Estamos
dispostos a enterrar nosso modo de ser e de crer como Igreja? Como posso dizer
que sou evangélico e católico, reduzindo a fraternidade ao círculo fechado e
restrito dos que pensam e creem como nós cremos e pensamos? Nada resolve
mudar de Igreja ou descobrir novas estratégias e fazer piruetas mirabolantes
para garantir a relevância e a adesão à nossa Igreja!
Coisa mais
estéril e ridícula os gritos histéricos e a pressão para abrir e lotar os
templos para louvar a Deus, bem como para acolher as generosas ofertas que
garantam o esplendor e os serviços de seus templos.
Quantas coisas
nos amarram e desfiguram, distanciando-nos dos primórdios da nossa herança e
legado. Não havia senhores e nem servos, nem príncipes ou plebeus, nem ala
masculina ou feminina, abastados e carentes; o ministério pastoral era exercido
para uma Igreja toda ministerial, uma nova criatura que nasce mergulhando no
mar de sangue e água que jorram da cruz.
Esperamos voltar
com novas reflexões sobre o serviço convertido em poder, sobre as alianças que
transformaram um pobre pescador em rei dos reis, pastores em príncipes
revestidos com as pompas das cortes e palácios.
Quais os
critérios que nos congregam e regem? Unidade no Pluralismo, Autonomia e
Comunhão? Ou Centralização e Subserviência, Feudos e Senhorios?
Kcho, La Ultima Cena. 2011.Óleo sobre tela.
Nesta Quinta
Feira Santa, ao recordar a Santa Ceia, em nossos cultos e missas, estamos
celebrando e vivendo a Eucaristia? O Concílio Vaticano II nos ensina que “a
liturgia é o cume para o qual tende toda a ação da Igreja”. (Constituição Sacrosanctum Concilium, 10).
Jesus de
Nazaré, o Verbo encarnado, despojado de glória e poder faz um gesto de escravo
que lava os pés de seu senhor! Na Igreja, os últimos são os primeiros, os
descartados são acolhidos, os chagados são curados?! Os impuros são acolhidos e
purificados com o manto da misericórdia?!
A Eucaristia
bem celebrada dispõe de duas Mesas para a Palavra e o Pão, pois a Palavra se
fez Gente como nós e Pão que sustenta o peregrino. Eucaristia é Diálogo e
Partilha do Amor Misericordioso. Acolher, entender, respeitar e amar as
diferenças em suas variantes. Repartir o bocado, isto é, aquilo que é vida para
mim.
Vamos celebrar
a Páscoa em nossas casas, como nos primórdios, em volta da mesa, melhor se
redonda, para o diálogo e a partilha que ajudem a entender quem nós somos, em
que mundo vivemos e caminhar em busca de vida sempre mais plena.
“Se para
muitos católicos a ida à missa dominical era um dos principais pilares da sua
identidade cristã, agora terão de se questionar sobre o que pode ser uma nova e
mais profunda fonte da sua vida de fé. O que faz de um cristão verdadeiro
cristão, quando o funcionamento da Igreja tradicional de repente deixa de
funcionar?” (Tomáš Halík, O Tempo das Igrejas Vazias,
p.13).
Essa pandemia
tornou nossas mesas mais vazias. Há uma ausência, um vazio, uma saudade. A mesa
é profundamente um lugar eucarístico. Os evangelhos nos mostram Jesus em várias
mesas, rodeado de gente, sobretudo de pecadores. O cardeal José Tolentino diz:
“no centro da liturgia encontrarás a mesa. A mesa onde Jesus quis comer a
Páscoa com os discípulos, a mesa de todas as refeições abertas onde acolheu os
pecadores, a mesa da Eucaristia onde ele repetidamente se oferece” (José
Tolentino Mendonça, Rezar de olhos abertos,
ed. Quetzal, p.186).
Votos e preces
para a Páscoa de uma nova civilização!
Dom Mauro Morelli é bispo emérito da Diocese de
Duque de Caxias (Rio de Janeiro, Brasil); Padre Dênis Cândido da Silva é da
Diocese de Luz (Minas Gerais, Brasil) e mestrando em Teologia pela Faculdade
Jesuíta de Filosofia e Teologia em Belo Horizonte (Minas Gerais).
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