Por Frei Aloísio Fragoso
Neste jogo de alternância entre mim e o
Pe. Daniel (este, postumamente), agora é a vez dele. Sinto-me irmanado com as
emoções que a sua poesia transmite. Não digo a mesma coisa quanto ao seu estilo
de vida. Quarenta anos de auto-enclausuramento seriam algo inconcebível para
mim. Só por conta deste isolamento compulsório da quarentena, já estou sentindo
comichão na planta dos pés e na alma.
Contudo, não vejo na sua decisão um processo de alienação e fuga; vejo,
antes, uma misteriosa experiência de ascetismo. Não sei como prová-la, apenas sinto-a. Do que ele escreve
emerge uma mística que nos proíbe de qualquer pré-julgamento. Só vim a
compreender isso (ainda em parte), após me convencer de que seus poemas são
autobiográficos. Eles são como gritos de um "prisioneiro" que perdeu
a chave da porta de saída.
Sinto isso quando ele pede perdão a Deus
pelos pecados que "gostaria de ter cometido" e só não o fez por medo.
Ou quando confessa sentir saudade do tempo em que "quis ser um São
Francisco de Assis". E agora, ao contemplar a figura do santo, esculpida
em barro, sobre sua escrivaninha, vê seu sonho reduzido a esta imagem, a esta
inércia. Ou ainda quando celebra seu sexagésimo oitavo aniversário. Compara-o a
um sonho que o transporta a 68 anos atrás, criança, e vê pássaros cantando na
árvore em frente da casa. A seguir, devolve-o a 68 depois, agora, e ele vê
novamente pássaros cantando na mesma árvore. E conclui com uma belíssima
profundeza mística: "a vida passa e o canto continua". Porém, não permanece só nele o tempo todo. Em outro
poema, adverte-nos para não confundirmos as cores da rosa, o perfume da rosa,
com a própria e verdadeira rosa, e assim, corrermos o risco de nos sacrificar
por ela, inutilmente.
Quem não se sente um pouco biografado
nestes poemas? Esta é a arte do bom poeta, "sentir o que todos sentem e
dizer o que ninguém diz".
Desta vez, vamos escutá-lo cumprindo um
grande Ato Penitencial, colocando-se entre a humilde confissão dos pecados e a
misericórdia de Deus. A consciência doída de viver em contradição é a sua
penitência.
______
Pedi perdão a Deus
dos pecados possíveis,
daqueles bons pecados
que só o medo e a
vergonha
Me impediram de torná-los
reais.
E Deus, lá do infinito
abismo
de sua compreensão do
mistério do homem,
Sorriu.
_____
Eu, pecador, me confesso
aos homens de meu tempo.
Fiz versos fúteis,
olhei a vida de esguelha,
fiz que não vi,
não quis sujar as mãos,
então fiz versos sociais
e protestei na sala-de-
jantar, entre amigos, baixinho.
retoquei-me no espelho,
fingi não ver os rostos
dos que sofrem,
fiz altas filosofias
sobre
a dor do mundo,
fui cisne ornamental de
lago parnasiano e azul.
Resta-me agora o consolo,
a vergonha de pedir perdão aos homens de meu tempo.
Eu, pecador confesso
e descarado.
______'
Não O traí,
não O vendi.
não O entreguei à
irrisão.
Minhas mãos não lavei,
estou livre de omissão.
Sou o santo do não.
E assim, ao ver Jesus,
Sei que estive presente à
crucifixão.
Sinto que sou a
Via-Sacra inteira,
a coroa de espinhos,
o manto de irrisão.
A verdade neguei,
neguei a luz.
Não me enforquei por
medo.
Sou os cravos e a cruz.
______
Sufocarei se não gritar
agora.
Deixa, Senhor, que eu
blasfeme,
na danação desta hora.
Preciso ser maldito
para sentir-me salvo.
Se permitires que eu
blasfeme agora,
verás, Senhor, que esta
blasfêmia é apenas
um jeito de oração
de um amor magoado.
______
Quando abrires as tuas
mãos
(faze-o antes que a tarde
finde)
verás que há sangue
nelas,
sangue que as mancha e te
mancha,
homem que te julgas
pacífico e inocente.
Quando abrires as mãos no
fim da tarde,
verás que há sangue nelas
e te espantarás porque
nada fizeste,
mas há sangue em tuas
mãos
porque nada fizeste.
E em vão te esconderás
da voz que irá te
interpelar
em teu silêncio.
FREI ALOÍSIO FRAGOSO é frade franciscano, coordenador da
Tenda da Fé e escritor.
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