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domingo, 14 de junho de 2020

COVID 19 + 14/06/2020 - QUADRAGÉSIMA REFLEXÃO MÍSTICA E POESIA (4) EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS


Por Frei Aloísio Fragoso

 

     Neste jogo de alternância entre mim e o Pe. Daniel (este, postumamente), agora é a vez dele. Sinto-me irmanado com as emoções que a sua poesia transmite. Não digo a mesma coisa quanto ao seu estilo de vida. Quarenta anos de auto-enclausuramento seriam algo inconcebível para mim. Só por conta deste isolamento compulsório da quarentena, já estou sentindo comichão na planta dos pés e na alma.  Contudo, não vejo na sua decisão um processo de alienação e fuga; vejo, antes, uma misteriosa experiência de ascetismo. Não sei como  prová-la, apenas sinto-a. Do que ele escreve emerge uma mística que nos proíbe de qualquer pré-julgamento. Só vim a compreender isso (ainda em parte), após me convencer de que seus poemas são autobiográficos. Eles são como gritos de um "prisioneiro" que perdeu a chave da porta de saída.

     Sinto isso quando ele pede perdão a Deus pelos pecados que "gostaria de ter cometido" e só não o fez por medo. Ou quando confessa sentir saudade do tempo em que "quis ser um São Francisco de Assis". E agora, ao contemplar a figura do santo, esculpida em barro, sobre sua escrivaninha, vê seu sonho reduzido a esta imagem, a esta inércia. Ou ainda quando celebra seu sexagésimo oitavo aniversário. Compara-o a um sonho que o transporta a 68 anos atrás, criança, e vê pássaros cantando na árvore em frente da casa. A seguir, devolve-o a 68 depois, agora, e ele vê novamente pássaros cantando na mesma árvore. E conclui com uma belíssima profundeza mística: "a vida passa e o canto continua". Porém,  não permanece só nele o tempo todo. Em outro poema, adverte-nos para não confundirmos as cores da rosa, o perfume da rosa, com a própria e verdadeira rosa, e assim, corrermos o risco de nos sacrificar por ela, inutilmente.

     Quem não se sente um pouco biografado nestes poemas? Esta é a arte do bom poeta, "sentir o que todos sentem e dizer o que ninguém diz".

     Desta vez, vamos escutá-lo cumprindo um grande Ato Penitencial, colocando-se entre a humilde confissão dos pecados e a misericórdia de Deus. A consciência doída de viver em contradição é a sua penitência.

         ______

 

Pedi perdão a Deus

dos pecados possíveis,

daqueles bons pecados

que só o medo e a vergonha

Me impediram de torná-los reais.

E Deus, lá do infinito abismo

de sua compreensão do mistério do homem,

Sorriu.

        _____

 

Eu, pecador, me confesso

aos homens de meu tempo.

Fiz versos fúteis,

olhei a vida de esguelha,

fiz que não vi,

não quis sujar as mãos,

então fiz versos sociais

e protestei na sala-de- jantar, entre amigos, baixinho.

retoquei-me no espelho,

fingi não ver os rostos

dos que sofrem,

fiz altas filosofias sobre

a dor do mundo,

fui cisne ornamental de

lago parnasiano e azul.

Resta-me agora o consolo, a vergonha de pedir perdão aos homens de meu tempo.

Eu, pecador confesso

e descarado.

        ______'

 

Não O traí,

não O vendi.

não O entreguei à irrisão.

Minhas mãos não lavei,

estou livre de omissão.

Sou o santo do não.

E assim, ao ver Jesus,

Sei que estive presente à crucifixão.

Sinto que sou a Via-Sacra  inteira,

a coroa de espinhos,

o manto de irrisão.

A verdade neguei,

neguei a luz.

Não me enforquei por medo.

Sou os cravos e a cruz.

        ______

 

Sufocarei se não gritar agora.

Deixa, Senhor, que eu blasfeme,

na danação desta hora.

Preciso ser maldito

para sentir-me salvo.

Se permitires que eu blasfeme agora,

verás, Senhor, que esta blasfêmia é apenas

um jeito de oração

de  um amor magoado.

        ______

 

Quando abrires as tuas mãos

(faze-o antes que a tarde finde)

verás que há sangue nelas,

sangue que as mancha e te mancha,

homem que te julgas pacífico e inocente.

Quando abrires as mãos no fim da tarde,

verás que há sangue nelas

e te espantarás porque nada fizeste,

mas há sangue em tuas mãos

porque nada fizeste.

E em vão te esconderás

da voz que irá te interpelar

em teu silêncio.


FREI ALOÍSIO FRAGOSO é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.


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