A cada dia, a situação social e política no Brasil é
mais trágica e violenta. Despreparada e desavisada, a maior parte da população
se defronta com um vírus cruel que, a cada dia, faz mais vítimas. Enquanto
isso, a preocupação de muitos governos municipais e estaduais é satisfazer a empresários
e comerciantes. Estes querem o funcionamento normal das indústrias e do
comércio. Para que os ricos possam cumprir sua quarentena, os pobres precisam
produzir e fazer o comércio funcionar a pleno vapor. No meio de tudo isso, o
presidente da República cuida de alimentar a sociedade com a sua porção diária
de ódio, racismo e todas as possíveis fobias sociais. Assim, com muita
competência, acirra cada vez mais os ânimos, favoráveis e contrários ao seu
desgoverno.
Neste clima de quarentena, um dos elementos mais dolorosos
é que as pessoas doentes e em risco de vida devem ser isoladas. Não podem
contar nem mesmo com a presença e o apoio afetivo dos familiares mais próximos.
E nos bairros de periferia, , onde as condições de moradia não permitem
qualquer distanciamento social, o vírus penetra com mais violência. Também nas populações
indígenas e grupos tradicionais, cuja cultura comunitária não interioriza a
noção de contágio ou imunização.
Nesse momento, o mundo inteiro vive a crise econômica
e social provocada pela pandemia. No plano do cuidado com o planeta, a pandemia
revela que chegamos ao fundo do poço. Cientistas predizem que se não houver
mudança drástica de caminho, possivelmente outros vírus se sucederão a estes e
a humanidade não sairá dessa corrente de destruição.
No plano social, o Brasil inteiro se recorda de que
estamos em tempos de festas juninas. No Nordeste, é a festa mais importante do
ano e corresponde aos festejos
pré-cristãos realizados desde tempos imemoriais no solstício do inverno. Na região andina, em locais especiais da Bolívia,
Peru e Equador, os índios festejam o Inti Rami, as festas ao sol no ano novo.
No Brasil, em roças e aldeias, principalmente do interior do país, há festas com
brincadeiras, quadrilhas e comidas típicas de cada região. Algumas destas
danças juninas vieram das cortes da Europa e são hoje o que se chamam
“quadrilhas”. Até hoje, nessas danças, se usam termos franceses. As pessoas se
vestem de caipiras e dançam como a nobreza de outros séculos. Nos casamentos
matutos, figuras como padres e juízes da roça são caricaturadas e acusadas de só
se interessarem por dinheiro e poder. Através dessas cenas humorísticas, as
camadas mais pobres do povo expressam suas fortes críticas à elite e o seu
protesto social contra as injustiças estruturais. Mesmo o fato de considerar
Santo Antônio santo casamenteiro, associar São João Batista com fogueira e
brincar com as chaves de São Pedro quebra algo da seriedade sisuda com que se
costumam olhar os assuntos do céu. Ligam os santos às realidades de cada dia.
Por trás das festas juninas, podemos descobrir a
imensa capacidade de se organizar do povo mais simples. Em poucas semanas e em
condições de pobreza e de servidão no trabalho, as pessoas superam todas as
dificuldades do dia a dia, ensaiam as danças, conseguem as vestes tradicionais,
organizam comidas típicas e revelam uma unidade fundamental, mesmo na
diversidade de opiniões políticas e de opções sociais. Atualmente, com o atual
desgoverno brasileiro, corremos o risco de perder esta identidade fundamental
de povo.
Em um mundo sem perspectivas, essas brincadeiras
populares contêm uma forte crítica social. Ricos e autoridades são caricaturadas
e apresentadas em suas ambições mesquinhas e suas velhacarias. Os mais pobres ensaiam
uma sociedade nova, na qual todos são protagonistas. Assim, na alegria e de
forma despretensiosa, grupos e comunidades populares sinalizam uma realidade
nova que se aproxima ao que os evangelhos chamam de reinado de Deus.
É importante que, mesmo neste ano, quando não podemos
vivenciar o caráter comunitário e presencial destas festas juninas, que este
tempo não seja esquecido. Que as músicas próprias desta época animem uma festa
no nosso coração, mesmo se estas festas coincidem com tempos de grande
sofrimentos e lutas. Elas podem sim se instrumentos de esperança e resistência.
Do seu modo e em sua linguagem lúdica, parecem traduzir uma palavra que os
evangelhos atribuem a São João Batista: “Mudem de vida porque a realização do
projeto de Deus no mundo está próximo!” (Mt 3, 2).
MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 57 livros publicados. O mais recente é Teologias da Libertação para os nossos dias (Vozes). Email: contato@marcelobarros.com
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