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terça-feira, 30 de junho de 2020

FESTAS JUNINAS, PANDEMIA E DEMOCRACIA


 

Por Marcelo Barros

 

A cada dia, a situação social e política no Brasil é mais trágica e violenta. Despreparada e desavisada, a maior parte da população se defronta com um vírus cruel que, a cada dia, faz mais vítimas. Enquanto isso, a preocupação de muitos governos municipais e estaduais é satisfazer a empresários e comerciantes. Estes querem o funcionamento normal das indústrias e do comércio. Para que os ricos possam cumprir sua quarentena, os pobres precisam produzir e fazer o comércio funcionar a pleno vapor. No meio de tudo isso, o presidente da República cuida de alimentar a sociedade com a sua porção diária de ódio, racismo e todas as possíveis fobias sociais. Assim, com muita competência, acirra cada vez mais os ânimos, favoráveis e contrários ao seu desgoverno.  

Neste clima de quarentena, um dos elementos mais dolorosos é que as pessoas doentes e em risco de vida devem ser isoladas. Não podem contar nem mesmo com a presença e o apoio afetivo dos familiares mais próximos. E nos bairros de periferia, , onde as condições de moradia não permitem qualquer distanciamento social, o vírus penetra com mais violência. Também nas populações indígenas e grupos tradicionais, cuja cultura comunitária não interioriza a noção de contágio ou imunização.

Nesse momento, o mundo inteiro vive a crise econômica e social provocada pela pandemia. No plano do cuidado com o planeta, a pandemia revela que chegamos ao fundo do poço. Cientistas predizem que se não houver mudança drástica de caminho, possivelmente outros vírus se sucederão a estes e a humanidade não sairá dessa corrente de destruição.  

No plano social, o Brasil inteiro se recorda de que estamos em tempos de festas juninas. No Nordeste, é a festa mais importante do ano e  corresponde aos festejos pré-cristãos realizados desde tempos imemoriais no solstício do inverno.  Na região andina, em locais especiais da Bolívia, Peru e Equador, os índios festejam o Inti Rami, as festas ao sol no ano novo. No Brasil, em roças e aldeias, principalmente do interior do país, há festas com brincadeiras, quadrilhas e comidas típicas de cada região. Algumas destas danças juninas vieram das cortes da Europa e são hoje o que se chamam “quadrilhas”. Até hoje, nessas danças, se usam termos franceses. As pessoas se vestem de caipiras e dançam como a nobreza de outros séculos. Nos casamentos matutos, figuras como padres e juízes da roça são caricaturadas e acusadas de só se interessarem por dinheiro e poder. Através dessas cenas humorísticas, as camadas mais pobres do povo expressam suas fortes críticas à elite e o seu protesto social contra as injustiças estruturais. Mesmo o fato de considerar Santo Antônio santo casamenteiro, associar São João Batista com fogueira e brincar com as chaves de São Pedro quebra algo da seriedade sisuda com que se costumam olhar os assuntos do céu. Ligam os santos às realidades de cada dia.

Por trás das festas juninas, podemos descobrir a imensa capacidade de se organizar do povo mais simples. Em poucas semanas e em condições de pobreza e de servidão no trabalho, as pessoas superam todas as dificuldades do dia a dia, ensaiam as danças, conseguem as vestes tradicionais, organizam comidas típicas e revelam uma unidade fundamental, mesmo na diversidade de opiniões políticas e de opções sociais. Atualmente, com o atual desgoverno brasileiro, corremos o risco de perder esta identidade fundamental de povo.

Em um mundo sem perspectivas, essas brincadeiras populares contêm uma forte crítica social. Ricos e autoridades são caricaturadas e apresentadas em suas ambições mesquinhas e suas velhacarias. Os mais pobres ensaiam uma sociedade nova, na qual todos são protagonistas. Assim, na alegria e de forma despretensiosa, grupos e comunidades populares sinalizam uma realidade nova que se aproxima ao que os evangelhos chamam de reinado de Deus.

É importante que, mesmo neste ano, quando não podemos vivenciar o caráter comunitário e presencial destas festas juninas, que este tempo não seja esquecido. Que as músicas próprias desta época animem uma festa no nosso coração, mesmo se estas festas coincidem com tempos de grande sofrimentos e lutas. Elas podem sim se instrumentos de esperança e resistência. Do seu modo e em sua linguagem lúdica, parecem traduzir uma palavra que os evangelhos atribuem a São João Batista: “Mudem de vida porque a realização do projeto de Deus no mundo está próximo!” (Mt 3, 2).

MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 57 livros publicados. O mais recente é Teologias da Libertação para os nossos dias (Vozes). Email: contato@marcelobarros.com



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