Por Eduardo Hoornaert
O Pastor batista Djalma Torres,
recentemente falecido em Salvador (no dia 24 de maio pp.), foi um propugnador
ativo e respeitado do ecumenismo, em toda a região do Recôncavo Baiano e mesmo
além, até internacionalmente. Um homem de ação, ele praticou um tipo de
ecumenismo que não é precisamente o mesmo daquele praticado ao longo do século
XX. Por isso, merece ser melhor conhecido. O Pastor Djalma acompanhou uma
história em rápida evolução, como fica patente em seu livro autobiográfico
‘Caminhos de Pedra’, publicado em 2011. Ele era antes de tudo ativista, pastor,
homem de ação, não tanto professor ou teórico do ecumenismo. Ele deixava-se
guiar por uma intuição certeira e é desse modo que abriu campos novos ao
ecumenismo, como quando intuiu a importância das religiões africanas na Bahia,
ou quando percebeu a importância do movimento de Canudos (do final do século
XIX). Nessas e em outras manifestações, Djalma intuía ecumenismo, o que
constitui uma novidade. Sempre admirei como ele, por exemplo, transitava com
extrema naturalidade e sem travo em ambientes católicos e como ele preferia
falar em ‘diálogo inter-religioso’ que em ecumenismo propriamente dito.
Esse último ponto é de grande
importância, pois denota uma transição que o próprio itinerário de Djalma, por
‘caminhos de pedra’, ilustra bem. Uma transição que pode passar despercebida,
mas é fundamental. Daí me veio a ideia de escrever esse texto, que, como todos
os meus textos, é de cunho histórico.
Procedo por sete pontos, de modo
seguinte:
- O movimento ecumênico nasceu sob o
signo da unificação.
- Unificação facilmente descamba para
autoritarismo.
- O cristianismo não nasceu uniforme.
- O cristianismo nunca foi uniforme.
- O catolicismo não vem das origens.
- Como o bispo de Roma virou ‘papa’.
- Nenhum modelo cristão é permanente.
1. O movimento ecumênico nasceu sob o
signo da unificação.
Quando, no início do século XX, se
começou a falar de ecumenismo, o sentido desse termo era diferente do que se
entende hoje, e a atuação do Pastor Djalma Torres é um dos mais claros exemplos
disso. Os pioneiros de diversos movimentos ecumênicos que surgem no início do
século XX (no seio, principalmente, do anglicanismo, do protestantismo e do
catolicismo, ou seja, no cristianismo ocidental), têm como meta voltar a uma
pretensa ‘unidade perdida’, ou seja, a uma unidade que se julga original no
cristianismo e que, ao longo dos tempos, teria sofrido sucessivas rupturas,
cismas e heresias. É nesse contexto que se invocam, nos referidos movimentos,
as palavras de Jesus no versículo 21 do capítulo 17 do Evangelho de João: para
que todos sejam um (em latim: Ut unum sint). Eis a referência básica,
desde 1908, da ‘Semana de Orações pela Unidade Cristã’, celebrada entre os dias
18 e 25 de janeiro no hemisfério norte, e em tempos de Pentecostes no
hemisfério sul, desde 1926. Nos nossos dias, a programação anual dessa Semana é
feita por meio de um comum acordo entre o Pontifício Conselho para a Unidade
dos Cristãos (um organismo católico) e o Conselho Mundial de Igrejas (um
organismo ecumênico de inspiração protestante). No corrente ano 2020, a Semana
foi programada para os dias 24 a 31 de maio de 2020, e - como todos e todas
sabemos - ficou largamente enfraquecida pelo Covid 19.
2. Unificação facilmente descamba
para autoritarismo.
A ideia da unificação de todos os
cristãos numa só denominação vem de longe. Ao longo de quase mil anos,
basicamente entre os séculos IV e XIII, a tradição cristã trabalhou em projetos
organizatórios que se assentavam basicamente no consenso, ou seja, na ordem das
coisas, na unificação. Sempre contra movimentos ditos ‘dissidentes’, heresias.
É a partir desse pressuposto que emergiu, no Ocidente, uma igreja que se
declarou ‘católica’, ‘espalhada pela terra inteira’ (kath’ holèn gèn),
‘ecumênico’ (oikoumenè: por onde mora gente), centrada numa dogmática
universalmente estabelecida.
O projeto logo descambou para
autoritarismo. A corporação clerical, executor do projeto unificador,
subordinou, com o tempo, todas as forças de se praticar a religião cristã sob
uma égide unificada. Um sucesso espetacular, cujo segredo residia no fato que o
projeto se assentava principalmente sobre imagens, símbolos e emoções, não
tanto sobre princípios racionais. Imagens abrangentes, espelhos da vida humana:
céu, inferno, pecado, salvação, condenação eterna. As massas camponesas ficaram
tão impactadas que, com o tempo, se conseguiu concentrar grandes conglomerações
de pessoas em imensas igrejas e catedrais (que, por vezes, têm a capacidade de
conter a população inteira do local), em santuários da devoção, em romarias e
peregrinações. Isso com tanto sucesso que, a partir de um certo momento (por
volta do século XIII), o sistema passou a se retroalimentar. As próprias massas
cristianizadas passaram a reproduzir o consenso, por meio da educação em
família e do convívio social. Quem perde com isso, de modo flagrante, é a
liberdade. Ela é substituída pela obediência, o seguimento, a
conformidade. Por todo canto se recomenda a uniformidade em torno de um
único polo: Um Deus no céu, um papa na terra, um imperador ou rei no país,
um pai na família. Unificação total.
3. O cristianismo não nasceu
uniforme.
O que acabo de descrever não
corresponde, de modo nenhum, às origens do cristianismo, hoje reveladas por
meio de estudos históricos sempre mais minuciosos, principalmente por pesquisas
aprofundadas de textos antigos, chamados ‘apócrifos’ (evangelhos, atos dos
apóstolos, cartas apostólicas, vidas de santos etc.), enfim, por textos que por
longos séculos foram proibidos.
Esses estudos constatam, de
modo convincente: o cristianismo nasceu pluriforme. Nas primeiras décadas,
quando o movimento de Jesus se concentrava em Jerusalém, na Galileia e em
diversos pontos da diáspora judaica como Antioquia, Alexandria e Roma, há como
distinguir diversos agrupamentos: em Jerusalém há os que seguem Tiago, o irmão
de Jesus; em Roma, imigrantes judeus escutam o evangelho de Marcos; em
Antioquia da Síria há cristãos fugitivos que entram em contato com o fariseu
Paulo (que em seguida se converte no Apóstolo Paulo), na Ásia Menor grupos se
reúnem em torno de João.
Concretamente, três agrupamentos
cristãos diversificados deixaram (direta ou indiretamente) vestígios em textos
escritos: os nazareus, os ebionitas e os elkasaítas.
- Os nazareus, como o termo indica,
são seguidores do ‘nazareu’ Jesus, ou seja, de Jesus de Nazaré. O movimento
demonstra uma longa história de impressionante resistência diante da emergência
de formas hegemônicas. Há documentos que revelam sua existência até os inícios
do século V, na parte ocidental da Síria. Perseguidos sem tréguas pelo
cristianismo ortodoxo, de caráter paulino, eles são provavelmente herdeiros de
cristãos galileus fugitivos da Palestina, no século I dC.
- Os ebionitas, assim chamados a
partir do termo hebraico ‘ebionim’, que significa ‘pobre’. São judeus. Além de
seguir a lei de Jesus, eles seguem a Lei de Moisés. Não divinizam Jesus,
repudiam Paulo e veem em Jesus um firme opositor contra uma religião baseada em
sacrifícios e penitências.
- Os elkasaítas. São grupos judeus,
conhecidos pelo nome do anjo Elkasai, que atuam em Roma por volta de 220. Seu
líder Alcibíades defende posturas de mútua compreensão entre judeus cristãos,
cristãos ortodoxos (paulinos) e seguidores de diversas religiões existentes no
Império Romano.
Eis os grupos que conhecemos por meio
de textos escritos. Deve ter havido mais, pois há de se considerar que a
tradição de Jesus, nos primeiros séculos, se espalha principalmente entre gente
analfabeta, que na época constitui mais de 90 % da população. Provavelmente
houve grupos nunca registrados por escrito.
4. O cristianismo nunca foi uniforme.
Com o tempo, as formações em torno do
Apóstolo Paulo se afirmam com vigor crescente, ganham a hegemonia e começam a
hostilizar as demais. Já no final do século II se percebe uma crescente
animosidade contra grupos não alinhados que começam a ser tratados de
‘heréticos’, no sentido pejorativo do termo. Ergue-se uma clausura entre
evangelhos considerados ‘canônicos’, que estariam cheios de riqueza teológica
diretamente derivada de Jesus, e, de outro lado, evangelhos ‘apócrifos’, que
não mereceriam confiança, por serem secundários, derivados, especulativos,
quando não grotescos e vulgares.
Essa divisão não se sustenta. É um
esquema montado no intuito de se estabelecer uma fronteira entre uma pretensa
‘pura’ doutrina e suas falsificações, uma discriminação que perdura por
séculos, em muitos ambientes até hoje. Assim muita riqueza da tradição cristã
se perde, pois, durante séculos, textos considerados heréticos foram queimados.
Hoje, a fúria anti-herética amainou,
a raiva passou. Mas a revalidação da ‘heresia’ permanece largamente restringida
a estudos acadêmicos. Pouco disso penetra entre os fiéis comuns. Eis o que o
Pastor Djalma percebeu com rara perspicácia.
5. O catolicismo não vem das origens.
O catolicismo nasceu de uma ruptura,
um ‘cisma’, ocorrido em 1054, resultado de séculos de tensões entre patriarcas
‘orientais’ (de Constantinopla, Alexandria, Antioquia etc.) que falam grego e,
de outro lado, o único patriarca que vive no Ocidente (em Roma, na Itália) e
fala latim. Assim se deve dizer que Igreja católica apostólica romana tem sua
origem mil anos após a morte de Jesus Cristo. O bispo de Roma, chamado ‘papa’
pelos fiéis, se faz rodear por um senado de cardeais e inicia uma história de
sucesso, principalmente baseada na diplomacia. Ao longo de séculos, praticamente
todos os governos da Europa ocidental aprendem a ‘arte romana’ da diplomacia.
Sem armas, Roma enfrenta com sucesso os maiores poderes do Ocidente, como
comprova a história de Canossa 1077, que não conto aqui, mas que você pode
acessar pela Internet.
Roma tem prestígio, é a antiga
capital de um imenso Império. O patriarca romano herda esse prestígio, ele
exerce um fascínio grande sobre peregrinos francos (da atual França) e
germânicos (da atual Alemanha), que viajam a Roma para venerar os pretensos
sepulcros dos Apóstolos Pedro e Paulo. Muitos símbolos do antigo
Império romano, sua memória, seus ritos, suas vestes e suas cerimônias,
sobrevivem na Igreja católica, e isso salta à vista de quem hoje visitar o
Vaticano.
6. Como o bispo de Roma virou ‘papa’.
De onde vem a palavra ‘papa’ (ou
pope)? É uma expressão de carinho, de criança diante de seu ‘paizinho’.
Derivada do termo grego ‘patèr’, que significa ‘pai’. É com esse termo que o
povo das comunidades cristãs costumava se dirigir a seus líderes espirituais.
No interior da Rússia, até hoje, o pastor da comunidade ortodoxa local se chama
‘pope’. Interessante saber que o primeiro ‘papa’, em textos escritos, não é o
bispo de Roma, mas o bispo de Cartago, cidade hoje desaparecida da África do Norte,
onde entre 248 e 258 viveu o bispo Cipriano. Em Roma, o termo ‘papa’ só aparece
tardiamente, no século VI. João I é o primeiro bispo de Roma oficialmente
chamado de ‘papa’.
Já no século II corria, em Roma, a
história do apóstolo Pedro crucificado no monte Vaticano, dentro dos muros da
cidade, enquanto o apóstolo Paulo teria sido martirizado ‘fora dos muros’. Em
torno dos pretensos túmulos de ambos, Pedro e Paulo, os peregrinos acudiram de
longe, durante séculos. Deixaram aí suas oferendas, que com o tempo formaram um
imenso montante em dinheiro, o que possibilitou a construção, na colina do
Vaticano, de uma Basílica de São Pedro (a atual Basílica é do século XVI-XVII).
Até hoje, o povo devoto não só sustenta financeiramente o Vaticano, mas confere
prestígio e honorabilidade a bispos e papas.
Enfim, o papado não ‘caiu do céu’ nem
proveio diretamente de Jesus, mas é resultado de uma longa contenda pelo poder,
repleta de manobras, jogos, enganos e domínios, como toda contenda política. É
principalmente após a bem-sucedida aliança com o emergente poder germânico no
Ocidente (o ‘guerrilheiro’ Carlos Magno é coroado Imperador pelo papa, no dia
de Natal do ano 800), que os papas romanos, sempre mais, elevam o tom de voz, o
que acaba dificultando as relações com os patriarcas orientais e finalmente
precipita o cisma de 1053.
7. Nenhum modelo cristão é
permanente.
Enfim, do exposto resulta uma
constatação: nenhum modelo cristão é permanente. Tudo, na história, está
sujeito à lei da provisoriedade, incompletude, imperfeição. Que o diga a
história do catolicismo nos últimos séculos. Outrora todo-poderosa e
onipresente, a igreja católica, com o advento da modernidade, perde
paulatinamente espaço público. No século XIX, principalmente durante o longo
pontificado de Pio IX, a antiga estratégia de se opor aos ‘poderes deste mundo’
não funciona mais. Não traz mais vitórias, acumula apenas derrotas. Então o
papa Leão XIII muda de estratégia e inicia uma política de apoio aos mais
fortes, uma estratégia que funciona durante todo o século XX. Bento XV sai da
primeira guerra mundial ao lado dos vitoriosos; Pio XI apoia Mussolini, Hitler
e Franco, enquanto Pio XII pratica a política do silêncio diante dos crimes
contra a humanidade perpetrados durante a segunda guerra mundial, à custa de
incontáveis vidas humanas. Após uma breve interrupção com João XXIII, a
política de apoio silencioso aos ganhadores (e de palavras generosas de consolo
aos perdedores) prossegue até poucos anos atrás. Hoje, o Papa Francisco não se
mostra preocupado com o declínio da igreja católica, ele se preocupa com outras
coisas.
Diante disso, alguns católicos
perguntam, com certa angústia: ‘pode a igreja católica subsistir sem papa?’ É
como perguntar se a França pode subsistir sem rei, a Inglaterra sem rainha, a
Rússia sem czar, o Irã sem aiatolá. O surgimento do luteranismo e do
anglicanismo, no século XVI, é uma viva comprovação que o cristianismo pode
subsistir sem papa. Há de se empenhar na desconstrução de esquemas autoritários
e na reconstrução democrática, como fez o Pastor Djalma ao longo da vida.
Haverá, no difícil diálogo
inter-religioso, certamente resiliências e saudosismos, tentativas de volta ao
passado. Mas há pessoas com o Pastor Djalma, que sabem que instituições não
costumam desaparecer com mudanças de formas de governo ou denominação. Cedo ou
tarde, a igreja católica terá de enfrentar a questão da superação do papado,
tal qual existe hoje, por uma forma de governo central mais condizente com o
mundo em que vivemos. A rigor, o problema não está no ‘papa’, mas no ‘papado’,
no modo em que funciona a instituição católica.
Como o Pastor Djalma gostava de se
referir ao bispo católico Helder Camara, termino estas considerações contando
um episódio na vida daquele bispo. Chegando a Roma para participar
do Concílio Vaticano II, em 1962, o bispo brasileiro estranha os comportamentos
na ‘corte romana’. Ele chega a ser acometido por alucinações, como conta em
suas Cartas Circulares (em vias de publicação pela Editora do Governo do Estado
de Pernambuco). Certa vez, vendo o cortejo de cardeais e bispos, com suas
mitras e seus báculos, na Basílica de São Pedro, ele vê o Imperador Constantino
(do século IV) invadir a igreja montado num garboso cavalo a pleno galope.
Outra vez, ele sonha que o papa fica louco, joga sua tiara no Rio Tibre e ata
fogo no Vaticano.
Não esqueçamos a palavra do corajoso frade agostiniano Martinho Lutero, que, no século XVI, defendeu a ‘liberdade cristã’ contra o princípio do consenso, da conformidade com modelos autoritários, da unificação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário