Por Frei Aloísio Fragoso
A festa do Corpo de Cristo, que celebramos
nesta quinta-feira, aponta para o mistério central da nossa Fé, a Encarnação:
"O Verbo se fez carne e habitou entre nós" Jo.1,14.
A
Divindade assumiu corpo humano no Corpo de Cristo. Até então, Deus se
comunicara de mil maneiras, mas agora sua Palavra alcança o máximo de
comunicação: Ele nos manda seu próprio Filho. Jesus é a Palavra viva de Deus,
falando conosco face a face. O resto é Mistério.
S. Paulo é o primeiro a querer desvendar
este Mistério: "embora sendo de natureza divina, Ele assumiu nossa
condição humana, fazendo-se igual a nós em tudo, menos no pecado" Cf.
Fil.2,6ss. E, a seguir, mostra o quanto nos valeu esta humilhação: fomos
elevados à semelhança divina: "Vós sois templos do Espírito Santo. O
Espírito de Deus habita em vossos corpos" Cf. 1Cor.3,16.
Desde então, nunca mais teve sossego a
mente humana, tentando desvendar os mistérios menores contidos neste grande
Mistério.
Nos primeiros séculos do cristianismo,
alguns não conseguiram admitir que este nosso frágil corpo fosse unificado com
a Divindade. Criaram uma doutrina chamada monofisismo, segundo a qual o corpo
de Cristo era só uma aparência, para abrigar o Ser divino em sua passagem na
terra. Outros aderiram ao maniqueísmo, doutrina que discrimina corpo e
espírito, sendo o primeiro fonte de todos os males e o segundo, único caminho
de santificação.
Enquanto isso, a devoção popular, distante
destas especulações teológicas, apenas reza: "Corpo de Cristo, salvai-me.
Sangue de Cristo, inebriai-me. Paixão de Cristo, confortai-me".
Vamos nós também pular esta fogueira,
passar da teologia para a realidade existencial. Nosso mundo atual tratou de
vingar-se de teólogos e ascetas que menosprezavam o corpo humano, durante
séculos. Elevaram-no ao pedestal dos deuses. O corpo virou objeto de idolatria.
E não faltam fiéis adoradores. Os seus templos estão abertos dia e noite, nos
espaços luminosos dos schopping-centers e nos palcos da grande mídia. Eles são
servidos por uma das indústrias mais lucrativas do mundo, uma das poucas que
não se abala com crises econômicas, a indústria dos cosméticos, o Mercado da
Beleza.
É curioso observar o seguinte: os
modernos pregadores do jejum estético
tem alcançado muito mais êxito do que os pregadores do jejum ascética, em
séculos de homilias. Pois as pessoas empenhadas em cultivar a beleza física
fazem uma dieta alimentar bem mais rigorosa do que as que jejuam por motivação
religiosa.
Se os antigos maniqueistas consideravam o
corpo inimigo da alma, os atuais hedonistas nem de longe estão preocupados com
esta dualidade; para eles a única forma de existência é a corporal.
Não faltam poetas para decantar os novos
ídolos. Um deles escreveu: "que me perdoem as feias, mas a beleza é
essencial". (Que me perdoe o poeta, mas sua estupidez é flagrante).
Este versinho de Vinícius de Morais ajuda
a esclarecer a denúncia contida nas entrelinhas desta reflexão.
Não se trata de condenar a vaidade humana,
em seus cuidados com o corpo, seja com a intenção de mantê-lo sadio ou de
conservar-lhe a beleza e a atração. Toda criatura é um reflexo da beleza do Criador.
Mostrar-se em sua formusura natural é um ato de adoração.
O pecado é de outra espécie, está no reino
de tensões e abominações que esta mentalidade gera, enquanto se nutre de
preconceitos: de raça, de cor, de riqueza, de beleza convencional. A deificação
do corpo, hoje em dia, visa a sede de lucro e a demarcação abusiva de
fronteiras, separando as classes sociais.
O que isso tem a ver com a festa do Corpo
de Cristo? Tudo a ver! O Corpo real de Cristo é o corpo de cada homem e de cada
mulher. Ele conheceu a beleza da transfiguração no Tabor e também a feiura da
flagelação no Calvário. "Ele era alguém diante do qual fechamos os olhos
para não ter que ver suas chagas", escreve o profeta Isaías. Por
conseguinte, Nele está contido um protesto contra toda forma de desumanidade
fundada na diferença de corpos.
O coronavírus tem sido também um grito de
alerta. Ele não faz distinção de qualquer espécie entre afortunados e
empobrecidos, entre embelezados e desfigurados, ele entra com a mesma "sem
cerimônia" numa mansão como num barraco. Se isso depois nos impelir a
encurtar a distância entre as pessoas, estabelecida por conta de preconceitos,
teremos aprendido mais uma lição na escola do sofrimento.
Na festa litúrgica de hoje, quero
agradecer ao Senhor o dom sacramental de poder pronunciar, sempre de novo, no
altar do Sacrifício, suas palavras imortais: ISTO É MEU CORPO! Amém.
FREI ALOÍSIO FRAGOSO é frade franciscano, coordenador da
Tenda da Fé e escritor.
Grande profeta!
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