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segunda-feira, 22 de junho de 2020

COVID 19 - QUADRAGÉSIMA TERCEIRA REFLEXÃO MÍSTICA E POESIA (5) EM TEMPOS DE CORONAVIRUS


Por  FREI ALOÍSIO FRAGOSO 

     Cumpre-se, nesta REFLEXÃO, o acordo estabelecido anteriormente, volta à cena o poeta místico Pe. Daniel Lima. Uma figura polêmica para nossa curiosidade de penetrar o mistério da natureza humana. Como conciliar sua fuga física da realidade (4 décadas de reclusão) com sua plena inserção poético-mística na mesma  realidade?

     Ao longo da História, grandes místicos foram também grandes combatentes. Um exemplo clássico é o de Sta. Teresa D'Ávila. Ao ler suas cartas autobiográficos, tem-se a impressão de duas mulheres em uma só: a que era elevada aos mais altos êxtases, a fenômenos transcendentais que até hoje os estudiosos procuram explicar, e a outra, dedicada por inteiro a renovar sua Ordem Religiosa, se exaurindo dia a dia em tarefas sem fim de construir novas casas para suas Irmãs, de garantir-lhes a subsistência, de obter os recursos financeiros indispensáveis, de enfrentar mil oposições. Nela o tempo da ação superava de muito o da contemplação.  No entanto, era tamanha a intensidade mística de que estava impregnada, que o tempo cronológico não contava. Ela vivia misticamente.

     No caso do Pe. Daniel, o enigma está na ausência deste equilíbrio. Ele mesmo se reconhece preguiçoso ("tenho doze guarda-chuvas, vinte pares de chinelos, cinco mil e oitenta livros, medo e preguiça demais") e culpado ("eu pecador, me confesso aos homens do meu tempo...fiz versos fúteis... não quis sujar as mãos ....fingi não ver o rosto dos que sofrem...).

     Os que se derem ao trabalho de ler o conjunto  de seus poemas talvez encontrem a resposta para este enigma, para esta paralisia do corpo em contraste  com os vôos da mente. Isso não elimina a dimensão mística  de seus poemas.  De onde se encontra, ele vê, lê e interpreta a realidade com a visão de quem penetra na essência e revela o código secreto das coisas.

     Há um outro poeta, maior do que ele, que decerto lhe foi uma fonte de inspiração, Fernando Pessoa: "para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo ou do meu destino... " Na verdade, ele sentia-se imobilizado frente à necessidade de viajar e expressava o desejo de "adiar esta viagem", de "adiar todas as viagens". Contudo, ele transmite a beleza essencial das coisas, que quase ninguém enxerga quando está viajando. Como, por ex. nestes versos: "O Tejo  é mais belo do que o rio que corre na minha aldeia, mas o Tejo não é mais belo do que o rio que corre na minha aldeia, porque o Tejo não é o rio que corre na minha aldeia". Isso é também mística.

    Agora ouçamos o Pe. Daniel:

 

Sinto saudade hoje

sinto saudade sempre

da fantástica viagem

que pelo mundo fiz

faz muito tempo.

Ontem.

 

A maravilhosa viagem

que continuo fazendo

em sonho, não dormindo,

mas em sonho real

de figuras e formas consistentes.

Viagem mais real que a própria vida

banal e cotidiana,

a falsa vida real do dia a dia.

E no exercício feliz dessa saudade

nada invento. Apenas reencontro.

(....)

Sinto saudades ontem, agora,

sinto saudade sempre

do mar Jônico, do Egeu,

do Adriático e do Tirreno.

Saudades do mar Báltico,

do Cáspio e do mar Negro.

Nunca os vi a esses mares

e por isso os vi sempre

e bem melhores,

que a saudade maior,

a saudade mais pura e verdadeira,

é a que nasce e rebenta dos desejos,

dos impulsos jamais efetivados.

(....)

E, pois, sinto mediterrâneas saudades

do Mediterrâneo

e latinas saudades da margem esquerda do Sena

e da margem direita

também:

vivi, sofri, amei, odiei as duas.

(.....)

Saudades de um mar não sei de onde,

um mar de catálogo de propaganda de agências de viagem.

Mas um mar que é meu

e onde navego em meu sonho;

e ancoro em plena praça de Florença

o meu navio,

o navio de minha fantástica viagem.

(....)

E a saudade que sinto de Atenas que sempre revisito.

Sinto na boca um sabor esquisito

de suas azeitonas e das melancias.

(Sócrates passa por mim e diz em grego: "bom dia").

Eu não sou um turista

que passeia curioso

e logo vai embora

e logo esquece

(e do que viu nas suas viagens

só lhe restam as anedotas banais

e as fotografias)

Sou um caminhante

que me torno o mundo

por onde caminho.

Integro-me à paisagem.

Sou os homens, as mulheres,

as praças e os jardins,

os museus, as montanhas,

as artes, a beleza,

a estranheza, a diferença

que em tudo vejo e vivo.

Sou o país que se esconde e o povo que se mostra.

Sou Florença e Viena,

sou Atenas.

Eu sou a Itália inteira.

 

E é por isto

que a saudade que sinto

eternamente

não é a da viagem em si,

é de mim mesmo.


FREI ALOÍSIO FRAGOSO é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.


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