Por FREI ALOÍSIO FRAGOSO
Cumpre-se, nesta REFLEXÃO, o acordo
estabelecido anteriormente, volta à cena o poeta místico Pe. Daniel Lima. Uma
figura polêmica para nossa curiosidade de penetrar o mistério da natureza
humana. Como conciliar sua fuga física da realidade (4 décadas de reclusão) com
sua plena inserção poético-mística na mesma
realidade?
Ao longo da História, grandes místicos
foram também grandes combatentes. Um exemplo clássico é o de Sta. Teresa
D'Ávila. Ao ler suas cartas autobiográficos, tem-se a impressão de duas
mulheres em uma só: a que era elevada aos mais altos êxtases, a fenômenos
transcendentais que até hoje os estudiosos procuram explicar, e a outra,
dedicada por inteiro a renovar sua Ordem Religiosa, se exaurindo dia a dia em
tarefas sem fim de construir novas casas para suas Irmãs, de garantir-lhes a
subsistência, de obter os recursos financeiros indispensáveis, de enfrentar mil
oposições. Nela o tempo da ação superava de muito o da contemplação. No entanto, era tamanha a intensidade mística
de que estava impregnada, que o tempo cronológico não contava. Ela vivia
misticamente.
No caso do Pe. Daniel, o enigma está na
ausência deste equilíbrio. Ele mesmo se reconhece preguiçoso ("tenho doze
guarda-chuvas, vinte pares de chinelos, cinco mil e oitenta livros, medo e
preguiça demais") e culpado ("eu pecador, me confesso aos homens do
meu tempo...fiz versos fúteis... não quis sujar as mãos ....fingi não ver o
rosto dos que sofrem...).
Os que se derem ao trabalho de ler o
conjunto de seus poemas talvez encontrem
a resposta para este enigma, para esta paralisia do corpo em contraste com os vôos da mente. Isso não elimina a
dimensão mística de seus poemas. De onde se encontra, ele vê, lê e interpreta
a realidade com a visão de quem penetra na essência e revela o código secreto
das coisas.
Há um outro poeta, maior do que ele, que
decerto lhe foi uma fonte de inspiração, Fernando Pessoa: "para viajar
basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do
meu corpo ou do meu destino... " Na verdade, ele sentia-se imobilizado
frente à necessidade de viajar e expressava o desejo de "adiar esta
viagem", de "adiar todas as viagens". Contudo, ele transmite a
beleza essencial das coisas, que quase ninguém enxerga quando está viajando.
Como, por ex. nestes versos: "O Tejo
é mais belo do que o rio que corre na minha aldeia, mas o Tejo não é
mais belo do que o rio que corre na minha aldeia, porque o Tejo não é o rio que
corre na minha aldeia". Isso é também mística.
Agora ouçamos o Pe. Daniel:
Sinto saudade hoje
sinto saudade sempre
da fantástica viagem
que pelo mundo fiz
faz muito tempo.
Ontem.
A maravilhosa viagem
que continuo fazendo
em sonho, não dormindo,
mas em sonho real
de figuras e formas
consistentes.
Viagem mais real que a
própria vida
banal e cotidiana,
a falsa vida real do dia
a dia.
E no exercício feliz
dessa saudade
nada invento. Apenas
reencontro.
(....)
Sinto saudades ontem,
agora,
sinto saudade sempre
do mar Jônico, do Egeu,
do Adriático e do
Tirreno.
Saudades do mar Báltico,
do Cáspio e do mar Negro.
Nunca os vi a esses mares
e por isso os vi sempre
e bem melhores,
que a saudade maior,
a saudade mais pura e
verdadeira,
é a que nasce e rebenta
dos desejos,
dos impulsos jamais
efetivados.
(....)
E, pois, sinto
mediterrâneas saudades
do Mediterrâneo
e latinas saudades da
margem esquerda do Sena
e da margem direita
também:
vivi, sofri, amei, odiei
as duas.
(.....)
Saudades de um mar não
sei de onde,
um mar de catálogo de
propaganda de agências de viagem.
Mas um mar que é meu
e onde navego em meu
sonho;
e ancoro em plena praça
de Florença
o meu navio,
o navio de minha
fantástica viagem.
(....)
E a saudade que sinto de
Atenas que sempre revisito.
Sinto na boca um sabor
esquisito
de suas azeitonas e das
melancias.
(Sócrates passa por mim e
diz em grego: "bom dia").
Eu não sou um turista
que passeia curioso
e logo vai embora
e logo esquece
(e do que viu nas suas
viagens
só lhe restam as anedotas
banais
e as fotografias)
Sou um caminhante
que me torno o mundo
por onde caminho.
Integro-me à paisagem.
Sou os homens, as
mulheres,
as praças e os jardins,
os museus, as montanhas,
as artes, a beleza,
a estranheza, a diferença
que em tudo vejo e vivo.
Sou o país que se esconde
e o povo que se mostra.
Sou Florença e Viena,
sou Atenas.
Eu sou a Itália inteira.
E é por isto
que a saudade que sinto
eternamente
não é a da viagem em si,
é de mim mesmo.
FREI ALOÍSIO FRAGOSO é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e
escritor.
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