Por Frei Betto
Ficar
confinado em casa suscita muitas nostalgias. Vontade de reencontrar parentes,
amigos, visitar livrarias, jantar fora, caminhar pelas ruas ou parques sem
máscara e perigo de contaminação.
É
muito diferente ficar voluntariamente retido em casa e compulsoriamente
trancado na prisão, como fiquei ao longo de quatro anos. O prisioneiro também
sente nostalgia das boas coisas da vida, porém de modo mais realista, pois sabe
que são meras fantasias impossíveis de serem realizadas, pelo simples fato de a
chave da porta ficar do lado de fora...
Agora,
na pandemia, a chave fica do lado de dentro. Basta abrir e sair à rua, aliás
como muitos fazem diariamente, seja por necessidade, impaciência ou
imprudência. Ainda assim, não conseguem realizar seus sonhos, porque os amigos
estão isolados; os bares, fechados; os espetáculos artísticos, cancelados ou
adiados. E andar pela rua, mesmo com máscara, é arriscado. Aglomerações são
inevitáveis.
Só
de pensar nessas limitações me conformo em permanecer confinado. Um luxo
comparado aos tempos de cárcere. Desfruto da natureza, saboreio pratos
saborosos, disponho de tempo para ler, escrever e fazer exercícios físicos,
livre das tensões do sistema prisional.
Há,
porém, uma diferença que incomoda e assusta: o carcereiro-carrasco é invisível.
Ele mede 85 nanômetros. Para se ter ideia do que isso significa, um fio de
cabelo tem 100.000 nanômetros de espessura. Para detectar o Covid-19, um
microscópio eletrônico precisa ampliá-lo ao menos 80 mil vezes. E esse ser de
dimensões ínfimas é capaz de infectar-me e provocar a minha morte.
Na
prisão, a aproximação do carcereiro era anunciada pelo bater de portas, passos
na galeria, tilintar do molho de chaves. Agora, o inimigo é imperceptível. Não
manda aviso prévio. Pode estar na embalagem que manuseio, na casca da fruta que
corto, na maçaneta que toco.
Ainda
que eu tome todos os cuidados higiênicos e cuide de desinfetar tudo que chega
da rua, o risco perdura. O que me protege é o privilégio de não ter que sair de
casa para garantir a sobrevivência, ao contrário da maioria da população
brasileira, e dedicar-me a um trabalho que exige recuo e solidão mesmo em
tempos “normais” – escrever. Assim,
consigo encurtar os dias e manter uma agenda de projetos literários que me
ocupará ainda por muitos meses.
Contudo,
anseio pelo fim dessa pandemia e que o mundo volte a girar. Neste momento me
sinto como nos dois primeiros anos de prisão, quando ainda não havia sido
julgado pelo tribunal militar e, portanto, sem a menor ideia de quanto tempo
haveria de ficar recluso. Poderia ser condenado a dois ou vinte anos, já que
tribunais de ditaduras se regem pelo arbítrio, e não pelo direito.
Graças
ao recurso impetrado no STF, fui condenado a dois anos. Sentença proferida na
semana em que se completavam meus quatro anos de prisão... Ainda que a pandemia
termine logo, também agora não há como recuperar o “tempo perdido”. Ponho entre
aspas porque sei que, para muitos, tem sido um período positivo de aprendizado
e mudanças de hábitos e propósitos.
Ainda
que a curva das vítimas da Covid-19 desabe e as autoridades sanitárias deem
sinal verde para o fim da quarentena, fica a dúvida enquanto não surgir a
vacina: e se o vírus se disseminar de novo? Portanto, só a vacina nos permitirá
um futuro de volta ao passado.
Frei Betto é escritor, autor de “Cartas da prisão” (Companhia das Letras), entre outros livros.
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