Por
Frei Aloísio Fragoso
Passada a Festa de Pentecostes, tem
início, na liturgia da Igreja, o chamado "Tempo Comum". O Espírito
Santo passa a ser o Patrono do tempo comum. Convém não confundir o adjetivo
"comum" com algo menos importante, menos significativo.
Logo após o acontecimento extraordinário
de Pentecostes, os apóstolos iniciaram o longo processo de Evangelização dos
povos, literalmente entendido como "Anúncio das Boas Notícias de
Deus". Onde plantar as boas notícias de Deus, senão no vasto campo da vida
cotidiana das pessoas?
O extraordinário cede lugar ao ordinário.
Na verdade, é das coisas ordinárias que brotam as extraordinárias. Os frutos maravilhosos das
plantas nascem do labor incessante e obscuro do agricultor e do movimento
silencioso da semente. A primeira lâmpada elétrica acendeu nas mãos de Thomas Edson, após mais
de 2.000 tentativas fracassadas durante anos de ensaios. A cura de milhares de
infectados do COVID 19 resultou do trabalho estafante e paciente de
profissionais da saúde, dos quais nem o nome conhecemos.
Pentecostes e Páscoa constituem uma
unidade indissolúvel. Páscoa é o embate permanente de vida-morte-ressurreição.
Sempre que dores ou mortes humanas tem alguma semelhança com a Paixão de Jesus,
a nossa Fé se apercebe de que nelas a semente da ressurreição está
fertilizando. Daí a esperança de que esta pandemia vai trazer mudanças
libertadoras, tranformações benéficas de mentes, valores e comportamentos,
ultrapassa a angústia natural de tantos sofrimentos e perdas.
Costumamos admirar os heróis da
Humanidade. Tudo bem, eles podem ser boas referências para a fecundação de
novos heróis. No entanto, precisamos rever nossos conceitos sobre heroísmo. E
comecemos por considerar aquela pobre e anônima mulher que se acorda na
madrugada e prepara o café da família e varre a casa e forra a cama e lava a
louça e estende a roupa úmida no varal e dá banho nos filhos menores e volta à
cozinha, pensando no almoço da família e vai ao mercado e passa a camisa do
marido e decora a sala com um jarro de flores do campo e volta à cozinha,
pensando no jantar da família e cantarola uma canção dolente para espantar o
demônio da rotina e se cansa e senta-se finalmente e logo cochila e deita-se e
não sonha de noite porque é preciso acordar de madrugada e não pensa jamais que
isso um dia vai ter um fim. Quem vê nesta pobre mulher uma verdadeira heroína,
uma peça-chave para o progresso da nação?
Conta-se, faz séculos, que o rei Antíoco
Segundo mandou construir uma ponte gigantesca no centro do seu Império. Para
cobrir as despesas, duplicou os impostos, penalizando a população mais pobre.
Um exército de 15.000 operários e 30.000 bestas de carga trabalharam dia e
noite, sem pausa. O rei só esteve lá uma vez, no dia da inauguração. No
entanto, todos que por ali passam vêem uma grande placa de metal com o seguinte
letreiro: "PONTE CONSTRUÍDA PELO GRANDE REI ANTÍOCO SEGUNDO".
Estas são imagens simbólicas e reais do
que acontece enquanto os livros de História forem escritos por representantes
das classes dominantes.
Mais recentemente, o espetáculo de grupos
da elite social, protestando nas ruas contra o isolamento, que tira os
operários de suas fábricas, provou esta verdade: quem produz riquezas são os
trabalhadores e não o grande capital.
Em meio a estes paradoxos, o que nos
oferece o Patrono do tempo comum? Ele nos oferece a chance de superar a praga
do estresse, provocado pelo vírus da rotina. Ele nos oferece a Mística do Reino
de Deus. Para entendê-la melhor, repasso outra destas estórias que herdamos dos
antepassados, do tempo em que iniciou-se a construção da Catedral de Notre
Dame, de Paris, na hora exata em que um viajante observa os operários
carregando pedras para os seus alicerces, e pergunta a um deles: "o que
fazes?", Ao que este responde com enfado: "estou carregando pedra,
não vês?" E repete a pergunta a outro, que, por sua vez, responde:
"estou construindo uma catedral'. Assim, uma mulher que varre a casa está
apenas "varrendo a sua casa" ou está "preparando um lar
feliz". Assim um amoroso pai de família que inventa mil artifícios para
livrar seus familiares do estresse, neste isolamento compulsório do COVID 19,
está "obedecendo às ordens do poder público" ou está "salvando
vidas de pessoas amadas". Depende da mística. O passarinho que dá mil pequenos vôos de lá pra
cá, carregando minúsculos gravetos, para fazer um ninho no galho de uma grande
árvore, onde vai gerar seus pequeninos
filhotes.... está construindo a Vida do Universo.
Tudo isso é a Mística do Reino de Deus,
com olhos abertos para as realidades
humanas e
a
Fé atenta à ação do Espírito, invisível a estes olhos.
E nós somos os seus artífices, tanto mais
fiéis quanto mais contemplarmos todas as coisas com o olhar do Espírito Santo.
Passada a festa de Pentecostes, continuamos a suplicar-lhe: "Enviai o
vosso Espírito e tudo será criado, e renovareis a face da terra".
Amém.
FREI ALOÍSIO FRAGOSO é
frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.
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