Por Marcelo Barros
A vida é o que há de
mais sagrado e está acima seja dos interesses econômicos, seja mesmo dos
preceitos religiosos.
Nestes dias, nos Estados Unidos e por todo o mundo, muitas
pessoas reagem contra o racismo revelado no assassinato cruel e covarde de George
Floyd. Brasileiros protestam contra o genocídio de jovens negros nas periferias
das cidades. No Recife, pessoas conscientes manifestam consternação diante da
morte de Miguel Otávio, criança negra de 5 anos, vítima do classismo e racismo
dominante na sociedade.
Enquanto a humanidade sofre a tragédia desta pandemia, o
presidente dos Estados Unidos cancela o financiamento de 400 milhões de dólares
que a Organização Mundial da Saúde (OMS) deveria receber. Atualmente, estão em fase
de testes oito tipos de vacinas contra o Covid 19. Destas, a metade (4) vem da
China. Donald Trump usa todo o seu poder para impedir que vacinas chinesas
cheguem ao mercado antes de novembro. Isso seria prejudicial à sua campanha
para a reeleição. Para ele, isso pesa mais do que a vida de milhares de pessoas
que seriam salvas.
No meio desta realidade, o presidente da África do Sul lança
um desafio à ONU: a vacina contra um vírus que é mortal e ameaça toda a humanidade não pode ser comercializado. A vida
não pode comercializada. Em vários países e inclusive no Brasil, entidades da
sociedade civil se unem em uma Campanha
internacional para declarar vacinas e remédios contra as epidemias como bens
comuns de toda a humanidade. Esta campanha é coordenada por uma Fundação
Internacional que tenta unir a humanidade em uma Ágora dos/das Habitantes da
Terra.
A consciência da dignidade e da igualdade de todos os seres
humanos e a compreensão de uma cidadania universal é, de certa forma, recente. Para
que tais conquistas possam ter ocorrido, foi importante uma evolução da cultura.
Hegel dizia que nós não somos donos das nossas ideias. São as ideias que entram
em nós e aí elas têm um poder transformador. A luta pelas ideias está na base
das grandes lutas emancipatórias da sociedade.
Uma das tragédias atuais é ver que muitas vezes, as pautas
mais retrógradas e claramente contrárias ao interesse dos pobres são apoiadas e
defendidas pela parcela mais pobre da população. Ao se deixar formar por meios
de comunicação, dominados pela elite, os pobres tendem a ser conservadores. Nos tempos antigos, as
massas defendiam a escravidão e o racismo. Hoje, muitos brasileiros apoiam
governos neofascistas. Revelam-se favoráveis à pena de morte, ao uso livre de
armas de fogo e à violência policial contra pobres e negros. Esta realidade só
muda quando a sociedade passa a se organizar por grupos e comunidades que
buscam compreender com mais profundidade a realidade social. São os movimentos
sociais e as comunidades humanas de base que formam o povo mais consciente de
ser povo. No mundo romano antigo, o latim fazia a distinção entre plebs (massa) e populus (povo organizado). O Concílio Vaticano II define que a
Igreja é uma porção do povo de Deus (populus
Dei) e não massa de fieis.
Infelizmente, na história, muitas vezes, Igrejas e religiões
foram contrárias aos grandes movimentos de libertação e promoção humana. Nos
séculos passados, muitos pastores e ministros cristãos defenderam a monarquia
contra a república. Consideravam a superioridade masculina sobre as mulheres
como vinda do próprio Deus. Eram contra a igualdade de gêneros e contra a
liberdade de expressão e de religião. Atualmente, em todo o mundo, pastores e
ministros ainda organizam cruzadas contra o direito das pessoas à diversidade sexual. Acima de tudo, acham que
religião deve estar sempre ligada à direita política. Nos Estados Unidos, um
presidente de direita faz guerras, destrói a vida em muitos países, manda prender
crianças de cinco anos de idade e as isolar de seus pais. Se este presidente
for contra o aborto e a união gay contará com o apoio explícito de muitos
bispos, padres católicos e pastores evangélicos. No Brasil, nestes dias,
conforme órgãos da imprensa, televisões que se dizem católicas ofereceram apoio
político ao presidente da República, em troca de ajuda econômica. No evangelho,
falou Jesus dos escribas e fariseus: vestem
roupas religiosas, fazem longas orações, enquanto exploram as viúvas pobres (Mc
12, 39- 40). Hoje, esses doutores da
religião não precisam explorar diretamente pobres e viúvas. Têm
televisão para inundá-los de campanhas de arrecadação econômica. Agora, pedem
ao governo para se beneficiar de verbas que vêm diretamente da exploração dos
pobres. Para eles, mais vale uma boa reza do que a ética humana e social.
Precisamos com urgência voltar ao evangelho de Jesus que afirmou:
“O sábado foi feito para o ser humano e
não o ser humano para o sábado”. As leis, mesmo as mais sagradas, devem
servir à vida e à felicidade das pessoas. Ao afirmar isso, Jesus enfrenta a
tensão entre pessoa e sociedade. Claramente, optou pelas pessoas. Defendeu a
mulher adúltera que a religião do templo mandava apedrejar. Revelou o amor
divino aos pecadores públicos que eram discriminados. Paulo escreveu: “Onde está o Espírito Divino, aí há
liberdade” (2 Cor 3, 17).
MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor. Tem 57 livros
publicados. O mais recente é Teologias da Libertação para os nossos
dias (Vozes). Email: contato@marcelobarros.com
Muito bom o texto. 👏🙏
ResponderExcluirMuito bom o texto. 👏🙏
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