"Tendo ouvido suas palavras, uma
mulher do povo exclamou, maravilhada: "bem-aventurados o ventre que te
gerou e os peitos que te amamentaram". Ao que Jesus respondeu: "antes
bem-aventurados os que ouvem as minhas palavras e as põem em prática"
Lc.11,27.
Logo após esta citação bíblica,
suspendemos nossa última REFLEXÃO, com a promessa de dar-lhe continuidade na
próxima. Aquela primeira abordou um tema polêmico, baseado em fatos reais,
amplamente conhecidos, de famílias que enfrentaram graves crises de
relacionamento, como sequelas da última
campanha e eleição presidenciais. Suas
convicções políticas antagônicas criaram divisões, em muitos casos,
intransponíveis. As reações foram diferenciadas. Contudo, a incompatibilidade e o acirramento das posições
levaram muitos a um distanciamento físico, como uma estratégia de preservar o
amor, evitando rupturas irreversíveis.
Nisso tudo, onde fica o amor?
Quem viu o filme "Dois Papas"
talvez lembre um pensamento colocado na boca do Papa Francisco: "a Verdade
é necessária, mas, sem Amor, ela se torna insuportável".
Cada componente de uma família possui o
direito inalienável de manter e defender suas próprias convicções. Logo, porém,
que estas se contrapõem e se atritam, sendo o amor ferido e não cicatrizando
esta ferida, é a Verdade que se torna insuportável.
Pode então chegar o momento em que o amor
mesmo pede o distanciamento físico, a fim de salvar-se de uma possível
corrosão. Quantas vezes já assistimos a cenas de amantes dizendo-se mutuamente:
"precisamos de um tempo afastados"! Aí descobrimos a resposta: o amor
fica onde sempre esteve: no coração das pessoas.
A
passagem do Evangelho citada no início abre-se ao nosso entendimento. Ela está
associada a uma outra do mesmo evangelista. Nossa Senhora, igual a uma mãe
zelosa, reclama do Filho a longa ausência
inesperada. "Não sabíeis que devo ocupar-me primeiro das Coisas do
Pai"?, responde Jesus. "Coisas do Pai", esta era a sua obsessão
que Ele chamava de "Reino de Deus". (Vinte séculos depois, um grande
profeta fez esta mesma afirmação com outros termos: "minhas Causas
valem mais do que minha vida" - Pedro Casaldáliga.)
Todos concordam que a família é a primeira
escola de aprendizagem em função da vida. Sua tarefa é educar (do latim
"ex-ducere") que significa conduzir de dentro para fora. Por
conseguinte, o molde constitutivo de cada pessoa tem a ela mesma como ponto de
partida e não está determinada pelos laços de sangue. O seu destino é maior do
que as fronteiras da família. Um belo dia ela ultrapassa estas fronteiras e sai
em busca do seu destino. Isso não se dá sem sofrimento. Por isso a família é
também a escola onde se aprende a última lição do amor: não é possível amar sem
sofrer.
Quando se diz que o lugar de guardar o
amor é o coração, isto quer dizer que ele permanece vivo ali onde a vida
palpita, torna-se um bem de reserva à espera das surpresas do tempo. Como
escreve o sociólogo Jessé de Souza: "tudo o que por nós é feito por nós
pode ser desfeito".
Sobre este assunto há uma outra passagem
bíblica bastante ilustrativa: a Parábola
do Filho Pródigo, a saga de um jovem inexperiente que abandona o convívio da
família em busca de aventuras. Ele é movido por sonhos e fantasias imaginados
em um outro mundo, muito além da rotina familiar. O pai acolhe sua opção de
partir com dor e compreensão, oferecendo-lhe a benção e a herança. Não há
ruptura de amor de parte a parte, ao contrário, ao reconhecer-se fracassado, o
filho voltará à casa do pai confiante na sua acolhida misericordiosa, e, ao
mesmo tempo o abraço paterno cheio de comoção é o reconhecimento de que seu
filho aprendera a lição que só se aprende arriscando-se a abrir seus próprios
caminhos.
Talvez esta quarentena com sua exigência
de isolamento compulsório seja uma boa oportunidade de reavaliar todas estas
questões. Cremos que o tempo é mestre da vida e que Deus nos educa através dos sinais
do tempo. Desde que ninguém pretenda fazer de sua percepção da Verdade um dogma
irrevogável, e seja conduzido pela virtude da sinceridade, acontecerá o melhor
desfecho: a parte da Verdade em cada um (a Verdade total só a Deus compete) há
de confrontar-se com os fatos reais e sofrer grandes impactos, até que
prevaleça a única Verdade definitivamente libertadora, a de Deus agindo em
nossa História. Amém.
Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.
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