Por Maria Clara Lucchetti Bingemer
Estive com Pedro Casaldáliga pessoalmente em duas
ocasiões. Na primeira, eu era estudante de graduação em teologia na
PUC-Rio e um colega, estudante jesuíta, me disse: Dom Pedro Casaldáliga
está na PUC. Corremos para vê-lo no auditório do RDC. A impressão
foi marca indelével que até hoje me acompanha. A pequena estatura e o
corpo magro ocupavam espaço estreito no grande auditório. Quando abriu a boca,
aquele homem de compleição frágil agigantou-se e incendiou a sala inteira com
sua voz de trovão e sua língua de profeta. Saí ungida e comecei a buscar
avidamente seus escritos e poesias para conhecê-lo melhor.
Uma segunda vez encontrei-o em Itaici, em congresso
de teologia promovido pelos Passionistas sobre a Cruz no mundo de hoje.
Pedro viera de ônibus, recusando a passagem de avião oferecida pelos
organizadores. O moderador da mesa o apresentou relatando esse fato. Diante dos
aplausos que se seguiram, o bispo fez um gesto para que aquilo cessasse. E
disse: “Isso não tem nada de extraordinário. Deveria ser normal”. Sua
oratória de profeta calou fundo em um auditório sedento de verdade e de pathos
teológico.
Depois disso não mais o vi em pessoa, mas seguia-o
sempre: quando foi a Roma para audiência com o então cardeal Ratzinger; quando
a mídia filmava seus depoimentos, declarações e testemunhos; quando foi à
Nicarágua acompanhar Miguel d´Escoto em sua greve de fome. Impressionava-me a
radicalidade de sua vida impregnada de evangelho, seu amor profundo pelo Deus
de Jesus, sua lucidez diante de uma realidade injusta e oprimida que ele
tentava denunciar e transformar.
Sua poesia sempre foi para mim profundamente
inspiradora. Em sua pessoa era visível a síntese feliz e
indissolúvel entre mística e política que sempre busquei em meu itinerário
teológico e hoje ainda me alimenta em meu trabalho. Porém, um de seus poemas me
acompanhou especialmente. Trata-se de “Deus é Deus”, que uso
frequentemente no início de cada curso sobre o Deus da Revelação que venho
ensinando há quase quarenta anos.
Ali o poeta e profeta busca dizer em versos quem é
o Deus que inspira e move sua vida. E começa por seu próprio ofício
de poeta: “Eu faço versos e creio em Deus; meus versos andam cheios de Deus
como pulmões estão cheios de ar vivo”. Mas outros poetas, que Pedro humildemente
reconhece fazerem versos melhores que os seus, como Drummond, não creem em
Deus. Deus não é somente a beleza. Assim também o Che (Ernesto Che
Guevara), figura muito admirada pelo bispo, deu a vida pelo povo, mas não via a
Deus na montanha. Deus não é apenas a Justiça. E Pedro afirma: “Não
poderia conviver com os pobres se não topasse com Deus em seus farrapos, se não
estivesse Deus como uma brasa queimando meu egoísmo lentamente”.
O poeta se refere, em seguida, aos cantores que
içam suas bandeiras e soltam a voz mas não referem seu canto a Deus. “Eu só sei
cantar dando seu nome. Deus não é somente a alegria”. Os sábios pesquisam
e “caminham imperturbavelmente contra o rosto de Deus fazendo história,
desvelando mistérios e perguntas”. Pedro reconhece humildemente: “Eu não seria
capaz desses caminhos se não estivesse Deus como uma aurora rompendo
minha névoa e meu cansaço. Deus não é somente a verdade”.
Nesse poema, o bispo que durante sua vida teve um
chapéu de vaqueiro como mitra, o anel de tucum e um calo nas mãos como anel
episcopal e um bastão tosco como báculo, exprime quem não é seu Deus. Não
é nenhuma das mediações que lhe permitem experimentá-lo: a beleza, a justiça, a
verdade, a alegria. O Deus que anima e move o bispo catalão, que dedicou boa parte
de sua vida ao Brasil, se revela como Mistério Santo que a tudo dá
sentido. E Pedro termina o poema proclamando quem é seu Deus: “Beleza sem
ocaso, Verdade sem argumentos, Justiça sem retornos, Amor inesperado, Deus é
Deus simplesmente!”
Neste momento, a Igreja do Brasil chora a partida
de seu profeta e poeta, do pastor que confirmava esperanças e acendia vocações
com o fogo de suas palavras e de sua vida. Enterrado ao lado dos pobres, em um
obscuro cemitério da sua querida diocese São Félix do Araguaia, Pedro não será
mais visto, ouvido, tocado por nós. Mas suas palavras e sobretudo seu
testemunho permanecem conosco para sempre.
Em 1980, quando assassinaram Monsenhor Romero em El
Salvador, Ignacio Ellacuria dele dizia: “Com Monsenhor Romero, Deus passou por
El Salvador”. Agora, nós, em lágrimas mas cheios de gratidão a Pedro e
Àquele que o criou, o chamou e o enviou, dizemos: “Com Pedro Casaldáliga, Deus
passou pelo Brasil”. Que essa certeza nos anime durante os tenebrosos momentos
que o país vive agora. Amém e obrigada por tudo Pedro.
-- Maria Clara Bingemer é professora do Departamento
de Teologia da PUC-Rio e autora de “Mística e Testemunho em Koinonia”
(Editora Paulus), entre outros livros
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