Kinno Cerqueira [1]
Nosso modo de pensar
parte de um conjunto de valores e princípios construídos ao longo de milênios
de anos, os quais, de tanto serem repetidos e impostos, moldam nossa visão e
determinam nossa compreensão sobre nós no mundo.
No mundo ocidental como
um todo, e particularmente no Brasil, a eleição e fixação de valores e princípios
contou com a participação crucial da religião cristã. Tenhamos presente que a
espécie de religião cristã que desembarcou aqui há cinco séculos, embora
ostentando o nome de Jesus, nada tinha a ver com este ou com seu projeto de
amor, justiça e solidariedade: tratava-se, fundamental e substancialmente, de
um cristianismo colonizador, assassino e patriarcal.
Os protestantismos que
por aqui chegaram, não obstante se autocompreendessem continuadores da tradição
da Reforma Protestante, há muito que também haviam abandonado o cerne do
“princípio protestante”: protestar contra quaisquer absolutismos – sejam de
natureza civil, política ou religiosa – e garantir o direito ao pleno exercício
da liberdade conduzida pelo amor. Salvo raras e isoladas exceções, os protestantismos
que se fixaram por aqui deram continuidade à colonização das mentes, ao
assassinato da liberdade e à absolutização do patriarcado.
No século XX, afloraram,
no mundo e no Brasil, diversos movimentos de libertação, tanto no âmbito civil
quanto nos espaços eclesiais e teológicos. Tratava-se, no âmbito dos espaços
eclesiais e teológicos, de movimentos que punham às claras as ideologias
brancas e patriarcais das igrejas e interpelavam o povo a ser comunidade
libertada para a liberdade, ao invés de ser gado de bispos, padres e pastores.
A plena efervescência de
movimentos de libertação estimulou teólogos e teólogas a empreender uma
releitura da Bíblia e da Tradição à luz do êxodo, da crítica do movimento
profético, da prática libertadora de Jesus e, em especial, da experiência de redescoberta
de Deus nos corpos mutilados pelas injustiças. Dentre as teologias da
libertação, as teologias feministas foram as que melhor desnudaram e afrontaram
a coluna de sustentação das desigualdades e injustiças, a saber, o “patriarcado”
ou “machismo”.
As teólogas feministas
ajudaram-nos a compreender que o patriarcado – a dominação masculina sobre as
mulheres – é estrutural e estruturante: dizemos que é “estrutural” porque as
estruturas psíquicas, familiares, culturais, sociais, políticas, econômicas e
religiosas foram construídas a partir e em função das aspirações e dos desejos
masculinos; consequentemente, é “estruturante”, uma vez que nosso modo de
pensar e agir reproduz, na maioria das vezes, a lógica própria das estruturas
patriarcais supracitadas.
Dentre os traços
característicos do patriarcado, salta aos olhos “a dominação sobre os corpos
das mulheres”. O que explica a ênfase dada à apresentação de Maria como uma
virgem silenciosa que pariu sem sexo nem prazer? Por que motivo as igrejas
protestantes ainda insistem em identificar feminilidade com subserviência? Por
que bispos, padres e pastores sentem-se tão perturbados quando uma mulher
reclama ter direito sobre seu próprio corpo? Os discursos contra a interrupção
da gravidez não seriam, no fundo, a exteriorização do medo de que a mulher
conquiste algum direito de decisão?
Ao que parece, são homens
frágeis, inseguros, profundamente assustados com a possibilidade de que as
mulheres rompam com a lógica de submissão ao macho. A emergência de uma nova
consciência de igualdade de gênero ameaça o clericalismo – tanto católico
quanto protestante – em sua base mais fundamental. Atemorizados ante a possibilidade
de deixarem de ser os donos dos corpos das mulheres, bispos, padres e pastores
alçam suas vozes em nome de Deus e da Igreja quando, na verdade, estão a
reclamar a manutenção daquilo que lhes concede honra, poder e glória: o
patriarcado.
Nós, se quisermos ser
fiéis à mais original tradição de Jesus, da Igreja Católica e da Reforma
Protestante, devemos deixar claro – pessoal e comunitariamente, no discurso e
na prática – que rejeitamos os ídolos patriarcais apresentados por bispos,
padres e pastores e optamos pelo Deus-Amor que se nos revela nos corpos
reprimidos e flagelados das mulheres.
[1] Kinno Cerqueira é pastor batista, biblista e
assessor do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos) na área de estudos bíblicos.
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