O Jornal On Line O PORTA-VOZ surgiu para ser o espaço onde qualquer pessoa possa publicar seu texto, independentemente de ser escritor, jornalista ou poeta profissional. É o espaço dos famosos e dos anônimos. É o espaço de quem tem alguma coisa a dizer.

sábado, 22 de agosto de 2020

EM NOME DE DEUS OU DO PATRIARCADO?

 

 

Kinno Cerqueira [1]

 

Nosso modo de pensar parte de um conjunto de valores e princípios construídos ao longo de milênios de anos, os quais, de tanto serem repetidos e impostos, moldam nossa visão e determinam nossa compreensão sobre nós no mundo.

 No mundo ocidental como um todo, e particularmente no Brasil, a eleição e fixação de valores e princípios contou com a participação crucial da religião cristã. Tenhamos presente que a espécie de religião cristã que desembarcou aqui há cinco séculos, embora ostentando o nome de Jesus, nada tinha a ver com este ou com seu projeto de amor, justiça e solidariedade: tratava-se, fundamental e substancialmente, de um cristianismo colonizador, assassino e patriarcal.

 Os protestantismos que por aqui chegaram, não obstante se autocompreendessem continuadores da tradição da Reforma Protestante, há muito que também haviam abandonado o cerne do “princípio protestante”: protestar contra quaisquer absolutismos – sejam de natureza civil, política ou religiosa – e garantir o direito ao pleno exercício da liberdade conduzida pelo amor. Salvo raras e isoladas exceções, os protestantismos que se fixaram por aqui deram continuidade à colonização das mentes, ao assassinato da liberdade e à absolutização do patriarcado.

 No século XX, afloraram, no mundo e no Brasil, diversos movimentos de libertação, tanto no âmbito civil quanto nos espaços eclesiais e teológicos. Tratava-se, no âmbito dos espaços eclesiais e teológicos, de movimentos que punham às claras as ideologias brancas e patriarcais das igrejas e interpelavam o povo a ser comunidade libertada para a liberdade, ao invés de ser gado de bispos, padres e pastores.

 A plena efervescência de movimentos de libertação estimulou teólogos e teólogas a empreender uma releitura da Bíblia e da Tradição à luz do êxodo, da crítica do movimento profético, da prática libertadora de Jesus e, em especial, da experiência de redescoberta de Deus nos corpos mutilados pelas injustiças. Dentre as teologias da libertação, as teologias feministas foram as que melhor desnudaram e afrontaram a coluna de sustentação das desigualdades e injustiças, a saber, o “patriarcado” ou “machismo”.

 As teólogas feministas ajudaram-nos a compreender que o patriarcado – a dominação masculina sobre as mulheres – é estrutural e estruturante: dizemos que é “estrutural” porque as estruturas psíquicas, familiares, culturais, sociais, políticas, econômicas e religiosas foram construídas a partir e em função das aspirações e dos desejos masculinos; consequentemente, é “estruturante”, uma vez que nosso modo de pensar e agir reproduz, na maioria das vezes, a lógica própria das estruturas patriarcais supracitadas.

Dentre os traços característicos do patriarcado, salta aos olhos “a dominação sobre os corpos das mulheres”. O que explica a ênfase dada à apresentação de Maria como uma virgem silenciosa que pariu sem sexo nem prazer? Por que motivo as igrejas protestantes ainda insistem em identificar feminilidade com subserviência? Por que bispos, padres e pastores sentem-se tão perturbados quando uma mulher reclama ter direito sobre seu próprio corpo? Os discursos contra a interrupção da gravidez não seriam, no fundo, a exteriorização do medo de que a mulher conquiste algum direito de decisão?  

 Ao que parece, são homens frágeis, inseguros, profundamente assustados com a possibilidade de que as mulheres rompam com a lógica de submissão ao macho. A emergência de uma nova consciência de igualdade de gênero ameaça o clericalismo – tanto católico quanto protestante – em sua base mais fundamental. Atemorizados ante a possibilidade de deixarem de ser os donos dos corpos das mulheres, bispos, padres e pastores alçam suas vozes em nome de Deus e da Igreja quando, na verdade, estão a reclamar a manutenção daquilo que lhes concede honra, poder e glória: o patriarcado.

Nós, se quisermos ser fiéis à mais original tradição de Jesus, da Igreja Católica e da Reforma Protestante, devemos deixar claro – pessoal e comunitariamente, no discurso e na prática – que rejeitamos os ídolos patriarcais apresentados por bispos, padres e pastores e optamos pelo Deus-Amor que se nos revela nos corpos reprimidos e flagelados das mulheres. 

 

[1] Kinno Cerqueira é pastor batista, biblista e assessor do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos) na área de estudos bíblicos.

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário