por FREI ALOÍSIO FRAGOSO
Começo a ter saudade de mim mesmo nesta
59ª e penúltima REFLEXÃO. Saudade
alimentada pelo sentimento gratificante de que fiz algum bem e fui recompensado
com a incomparável satisfação de ter
feito algum bem.
A saudade me remete aos primórdios e aí
identifico o fio condutor de todas estas reflexões: a utopia de um outro mundo
possível.
Foi no ano 2005, na cidade de Porto
Alegre, 160.000 participantes, vindos de 135 países, reunidos no 5º Forum
Social Mundial, fizeram desta legenda um clamor universal: "um outro mundo
é possível".
Quinze anos se passaram, quinze carnavais,
quinze vezes milhões de pessoas se mascarando, se transfigurando, se
fantasiando, a fim de viver, durante 3 dias, esta grande utopia: o outro mundo
possível está acontecendo aqui e agora. Era a ficção cansada de esperar pela
realidade.
Agora, em tempos de pandemia, o sonho se
refaz com uma nova legenda: "o mundo nunca mais será o mesmo". Fica
no ar uma dúvida....para melhor ou para pior?
Coloco-me do lado dos que tem uma visão
dialética da História. Creio que ela avança continuamente para estados
superiores. Contudo isso se dá dialeticamente, não de forma ascensional ou
linear ou cíclica, mas sim por meio de contradições, com avanços e recuos,
perdas e ganhos, sucessos e malogros.
O cristão avalia a História com os olhos
da Fé, acreditando que ela é conduzida por um Poder Superior que não anula
nossas iniciativas, porém transcende-as. Por isso ele se sente convocado a
empenhar-se para que se tornem realidade os grandes sonhos coletivos da Família
Humana. "Deus quer, o homem sonha, a obra nasce", escreve o poeta
Fernando Pessoa. O que fazer para que se cumpra esta trilogia que conecta a
vontade do Criador, o anseio das criaturas e a ação geradora dos fatos reais?
Subsídios é o que não nos falta.
Neste início do séc. XXI, a grande maioria
da humanidade está cética com relação a todas as filosofias e teologias que
advogam o otimismo histórico. E vê desmoronar o mito do progresso
científico-tecnológico como esperança de redenção. Daí resulta a busca de
refúgio no fundamentalismo religioso. O fundamentalismo é uma terrível ameaça.
Sua estratégia consiste em eliminar qualquer base racional da Fé, aprisionando
as pessoas no obscurantismo e no fanatismo, como meio eficaz de controlar as
consciências. Por isso ele se enquadra como uma luva nas mãos dos poderes
ditatoriais. Estes manipulam o fundamentalismo com o mesmo propósito, alcançar o domínio absoluto da população,
boicotando-lhe o exercício do pensamento. Ele se manifesta sutilmente, seja em
pequenos detalhes (por ex. quando o Ministro da Justiça chama-se a si mesmo de
"Servo" e ao Presidente, de "Profeta"), seja
escandalosamente (é o caso recente da pastora Flordelis, acusada de arquitetar
a morte do marido. "Separar-me dele não posso porque ia escandalizar o
nome de Deus", declarou ela, preferindo conviver com a culpa privada de
ser assassina do que com a confissão pública de estar separada). Coisas do
fundamentalismo.
Nosso caminho é o da lucidez. A encarnação
do Filho de Deus selou um pacto de amizade entre Deus e nós. Por este pacto,
recebemos o penhor das suas promessas e a garantia do êxito final. Desde que a
Divindade se abaixou até a nossa condição humana, cabe-nos descobrir sua
presença por meio de nosso compromisso com tudo que é humano e terreno.
Nossa fé nos coloca na contra-mão do
Sistema dominante. Ser cristão hoje é estar na oposição ao "status
quo". Não devemos temer a aparente superioridade das forças adversas. Não
se conhece nenhuma época em que Deus tenha contado com maiorias (ou com
exércitos) para realizar seus desígnios. "Não tenham medo, pequeno
rebanho, pois foi do agrado do Pai confiar-lhes o Reino", adverte Jesus em Lc.12, 32.
No entanto, quando Deus opera em nosso
favor, Ele só o faz com a nossa participação.A utopia de que o mundo nunca mais
será o mesmo, entendida como "Boa Nova", não acontecerá por geração
espontânea, mas pela nossa capacidade de gerir suas sequelas.
Enquanto esperamos impacientemente o fim do
coronavirus, comecemos a rezar o salmo
143: "Bendito seja o Senhor, meu rochedo, que adestrou minhas mãos para a
luta". Amém.
Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.
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