Prof.
Dr. Martinho Condini
[Este
artigo é uma adaptação do texto que foi publicado no livro A Escola dos Meus Sonhos [livro eletrônico]/Paulo Roberto
Padilha...[Et Al] organizadores, São Paulo: Instituto Paulo Freire.2019. p.255
a p.260]
Neste artigo apresentarei a educação libertadora de dom
Helder à luz da pedagogia de Paulo Freire, isto significa que a prática de dom
Helder está diretamente relacionada com a pedagogia de Paulo Freire e que este artigo
é uma leitura da pedagogia de Helder à luz de Freire. Isto não significa
afirmar que a educação libertadora de dom Helder tenha surgido a partir da pedagogia
freireana, mas apenas sustentar que há uma relação direta entre o pensamento e
as ações de dom Helder e Paulo Freire. Pretendo mostrar essa relação, pois,
para ambos, pobres ou pequeninos, como dizia dom Helder, ou os oprimidos, termo
utilizado por Paulo Freire, foram os elementos geradores da construção dos seus
pensamentos e práticas.
As semelhanças históricas entre dom Helder e Paulo Freire
colaboraram para que tivéssemos uma convergência de ideias em relação ao que
ambos pensaram, realizaram e produziram ao longo de suas vidas1.
Ambos nordestinos, um cearense e um pernambucano, oriundos
de famílias humildes, tiveram de enfrentar problemas típicos das famílias
nordestinas que viviam nas
áreas urbanas2: o esforço para o sustento da família, a criação dos
filhos e as dificuldades em propiciar a eles uma formação escolar digna e de
qualidade.
Após a infância e a adolescência, ambos tiveram rumos
profissionais diferentes: dom Helder se tornou um religioso e Paulo Freire,
após a formação em Direito, enveredou para a área educacional como professor de
língua portuguesa e, posteriormente, tornou-se também um educador. Apesar de
dom Helder ser doze anos mais velho que Paulo Freire, eles foram contemporâneos
no século XX.
Suas histórias de vida seguiram diferentes caminhos, mas
tiveram durante suas carreiras uma preocupação comum: a questão com os
excluídos e oprimidos. Atuaram na sociedade com o intuito de possibilitar aos
menos favorecidos condições para que os mesmos pudessem se tornar pessoas
livres, isto é, em condições de entender a sua realidade e, a partir dela,
transformá-la; cada um deles com a sua prática, mas se utilizando de recursos
semelhantes.
As circunstâncias históricas fizeram com que ambos, no
início do Governo Militar (1964-1985), estivessem vivendo na cidade de Recife.
Dom Helder, recém chegado, transferido da cidade do Rio de Janeiro e Paulo
Freire, vivendo em sua cidade natal. Nesse período do Governo Militar, Dom
Helder e Paulo Freire foram perseguidos pelo regime de exceção.
Paulo Freire, ainda no ano de 1964, foi preso e exilado do
país, retornando apenas em 1980. Durante o período no exílio, Paulo Freire
produziu todo o arcabouço daquilo que mais tarde veio a ser chamado de pensamento freireano. Paulo Freire teve na experiência do trabalho de
alfabetização de adultos no nordeste brasileiro a inspiração para escrever a
obra que foi a espinha dorsal do seu trabalho como educador, a Pedagogia
do Oprimido, escrita no exílio, no Chile em 1968.
Dom Helder, pela sua condição de arcebispo de Olinda e
Recife, pela notoriedade que obteve em função do seu trabalho no Rio de Janeiro
e pela liderança que representava dentro da Igreja, permaneceu no Brasil, mas
sofreu intensa perseguição do governo, juntamente com seus auxiliares da Arquidiocese
de Olinda e Recife, por fazerem oposição ao governo militar.
É inegável que no período ditatorial, mas não só nele, dom
Helder e Paulo Freire tiveram intensa influência na formação do pensamento
educacional e social brasileiro. Ambos realizaram trabalhos que contribuíram no
meio intelectual, como também nas camadas populares da sociedade.
Isso pode ser constatado por meio dos acontecimentos
históricos daquele período: Paulo Freire foi perseguido, preso e exilado; dom
Helder foi impedido por quatro vezes de receber o prêmio Nobel da Paz e
censurado por quase uma década dentro do seu país. Essas perseguições sofridas
por ambos fez com que suas vozes e ideias ecoassem fora do Brasil, em oposição
à ditadura militar, e a determinação de suas posturas fez com que defendessem
suas ideias mesmo com dificuldades e até ameaças pessoais.
Apesar da aproximação histórica de dom Helder e Paulo
Freire, de sua contemporaneidade, de morarem na mesma cidade3, ambos
nunca realizaram ou produziram algum estudo ou trabalhos juntos. O que podemos
constatar é que ambos, em alguns momentos, referiram-se um ao outro de maneira
respeitosa, mencionando o trabalho realizado.
Quando Paulo Freire foi libertado da prisão e dom Helder
pensou em convidá-lo a auxiliar no trabalho da pastoral da Arquidiocese de
Olinda e Recife, Dom Helder, na época, fez a seguinte menção ao método de
alfabetização de adultos de Paulo Freire: “[...] o método está longe de ser
apenas mera alfabetização [...]” (apud PILETTI; PRAXEDES, 2008, p. 257).
O arcebispo de Olinda e Recife foi um importante
interlocutor de Paulo Freire na
Igreja, principalmente como elo para a reflexão e entrada do pensamento
pedagógico libertador no meio eclesiástico. Após a leitura do livro Pedagogia do Oprimido,
em 1971, dom Helder considerou-o “[...] de alcance decisivo para se obter a
medida adequada de conscientização, evitando que o oprimido de hoje se
transforme no opressor de amanhã” (apud PILETTI; PRAXEDES, 2008, p. 340).
Em função do exílio de Paulo Freire, dom Helder o via “[...]
como embaixador especial de nosso gênio e de nossa cultura [...]” (Ibidem, p.
341), como escreveu em carta à revista Visão, em setembro de 1971, indicando o educador para o título de Homem de Visão
daquele ano. A essa atitude de dom Helder, Paulo Freire, que mantinha pelo
arcebispo a mesma admiração, escreveu-lhe agradecendo a indicação.
Em entrevista ao professor Celso de Rui Beisiegel, em 1980,
Paulo Freire relatou que “os dois haviam se tornado amigos nos anos 60, quando
se aproximaram por intermédio da professora Anita Paes Barreto, e das
assistentes sociais Lourdes de Moraes, Dolores Coelho e Hebe Gonçalves, amigas
de ambos e colaboradoras das obras sociais de dom Helder em Recife” (Ibidem, p.
341).
Os diálogos entre Paulo Freire com os mais diferentes grupos
sociais em torno do assistencialismo teceram a maneira ideológica dele elaborar
e atuar em prol dos menos favorecidos. A questão assistencialista o incomodava
e, também, os que praticavam o assistencialismo. Em relação a dom Helder, Paulo
Freire o colocava fora de uma postura meramente assistencialista, opinião com a
qual também concordo.
Esses dois pensadores brasileiros do século XX tinham várias
coisas em comum, mas quero destacar, a defesa de uma educação libertadora, pois
ambos acreditavam que excluídos e oprimidos da nossa sociedade só sairiam dessa
condição por intermédio de uma formação onde os mesmos conquistassem a sua
liberdade, ou seja, tivessem um entendimento do mundo a partir da sua realidade
para assim, poder transformá-la.
Para Freire, a luta em busca da liberdade se dá
simultaneamente em duas esferas: no campo da interioridade humana (consciência)
e no campo sociopolítico. A prática da busca pela liberdade está na constante
luta pela superação das relações opressoras na sociedade. A liberdade será
alcançada quando os homens lutarem pela libertação de todos.
Paulo Freire elaborou exaustivamente o que chamou de
libertação:
[...] em sua obra de
1985, intitulada A
Política da educação: cultura, poder e libertação. No livro Freire
associa a libertação com os oprimidos, os revolucionários, a educação e a
Igreja. Freire acreditava que o futuro dos oprimidos é a ‘realização de sua
libertação – sem a qual eles não podem ser”. (STRECK, REDIN e ZITKOSKI, 2008,
p. 247)
Paulo Freire construiu uma pedagogia libertadora que permeou
todo o seu trabalho educacional. A liberdade, a libertação, como a
conscientização e a humanização, foram elementos importantes para a construção
da pedagogia freireana. Para ele, as pessoas que acreditam na educação
libertadora estão comprometidas com uma “[...] práxis social [...], ajudando a
libertar os seres humanos da opressão que os sufoca em sua realidade objetiva
[...]”. Ele acreditava que “a educação verdadeiramente libertadora só pode ser
posta em prática fora do sistema comum, e mesmo assim com grande cautela, por
aqueles que superam sua ingenuidade e se comprometem com a libertação
autêntica”. (Ibidem, p. 248)
Paulo Freire entendia as relações humanas dentro de um
processo libertador por meio do diálogo, em que as pessoas juntas vão tomando
consciência de maneira crítica da realidade e a partir daí procuram tomar
atitudes que possibilitem fazer mudanças, transformar as suas realidades. Para
que homens e mulheres atingissem sua libertação seria necessário se fazer outra
leitura do mundo e agir sobre ele.
Para dom Helder, a educação é um dos meios de possibilitar a
criação de outra sociedade, de um mundo mais justo e humano. Ele se referia ao
processo de uma educação libertadora: “[...] a educação parece, em grande
parte, fora da realidade, da verdade, pois não está libertando. E precisamos
vitalmente, urgentemente, da coragem de nos unirmos para a educação
libertadora. Eis a missão máxima do homem de nossos dias [...]” (CAMARA, 1976,
p. 57). O seu questionamento aos setores educacionais era: “[...] a educação
que gerou o nosso mundo, liberta ou escraviza?” (Ibidem, p. 55). Tais
questionamentos demonstravam que, para dom Helder, as instituições educacionais
necessitavam de profundas transformações.
Ele
acreditava que era necessário a sociedade se unir para realizar uma educação
libertadora, pois, por meio dela, o homem se tornaria não só o principal
responsável pelo destino da humanidade como também o construtor de sua
história.
A
educação libertadora deveria ensinar a importância da humanização, o respeito
aos direitos humanos, a justiça, a conscientização política e a igualdade
social. Essas propostas apontam para a possibilidade de se construir uma
sociedade onde as pessoas se tornem agentes da própria história, condutoras do
próprio destino, precursoras do desenvolvimento.
Helder
e Freire sempre tiveram coragem de enfrentar desafios e propor mudanças para a
melhoria das condições de vida da população e reconheceram na educação
libertadora um dos principais elementos para as pessoas realizarem as tão
sonhadas transformações sociais.
Apesar
da distância física de ambos, Helder e Freire sempre estiveram juntos na
esperança de que era possível construir um mundo mais justo, digno e fraterno
para todos.
Concluindo,
quando penso na “Escola dos Meus Sonhos”, inevitavelmente me vem à lembrança Helder
e Freire, pois estou convencido que o trabalho de ambos foi e ainda o é
importantíssimo para a construção da “Escola dos Nossos Sonhos”. A “Escola dos
Meus Sonhos”, é aquela escola onde a educação seja libertadora, onde as pessoas
pensam e se expressam a partir do seu lugar de fala e olhar de mundo, para que
possam sair da sua condição de oprimido e adquirirem sua autonomia.
Notas de rodapé
2 Dom
Helder, na cidade de Fortaleza, e Paulo Freire, na cidade de Recife.
3 Dom
Helder chegou a Recife em abril de 1964 e Paulo Freire vai para o exílio, na
Bolívia, em outubro
desse mesmo ano.
Referências
Bibliográficas
CAMARA,
Helder P. O deserto é fértil. 3ª Ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1976.
CONDINI,
Martinho. Fundamentos para uma Educação Libertadora:
Dom Helder Camara e Paulo Freire. São Paulo: Paulus Editora. 2014.
PILETTI,
Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom Helder
Camara: o profeta da paz. 2ª Ed.
São Paulo Contexto, 2008.
STRECK, Danilo R, ;
REDIN, Euclides; ZITKOSKY, Jaime J. (Orgs.) Dicionário
Paulo Freire.
Belo Horizonte, MG; Autêntica, 2008.
O Prof. Martinho Condini é historiador, mestre em Ciências da Religião e doutor em Educação. Pesquisador da vida e obra de Dom Helder Camara e Paulo Freire. Publicou pela Paulus Editora os livros 'Dom Helder Camara um modelo de esperança', 'Helder Camara, um nordestino cidadão do mundo', 'Fundamentos para uma Educação Libertadora: Dom Helder Camara e Paulo Freire' e o DVD ' Educar como Prática da Liberdade: Dom Helder Camara e Paulo Freire. Pela Pablo Editorial publicou o livro 'Monsenhor Helder Camara um ejemplo de esperanza'. Contato profcondini@gmail.com
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