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segunda-feira, 31 de agosto de 2020

O PODER TERAPÊUTICO DA ESCRITA

 

                         Maria Clara Lucchetti Bingemer

 

Não é à toa que psicanalistas e orientadores espirituais ao longo da história aconselharam seus pacientes e orientandos a escrever suas experiências.  A intenção é provocar uma anamnese e ajudar a lidar com sentimentos em revolta ou movimentos interiores desencontrados. Por vezes, escrever é também instrumento de resistência e mesmo sobrevivência a sofrimentos que vão além do suportável e ameaçam o equilíbrio psíquico e a continuação da vida biológica. 

Assim é que mulheres judias durante a Segunda Guerra Mundial, em meio ao horror do holocausto nazista, encontraram na escrita um modo de resistência para continuar vivendo em meio ao sofrimento e à dor, sob contínua ameaça da morte. Foi esse o caso da judia convertida ao catolicismo e monja carmelita Edith Stein; da filósofa judia agnóstica  Simone Weil, a qual, possuída pelo Cristo e morta aos 34 anos, deixou uma obra que preenche 19 volumes;  assim igualmente a jovem judia também agnóstica Etty Hillesum, que morta aos 29 anos de idade em Auschwitz, deixou três volumes de um diário e algumas cartas, impressionando o mundo com a profundidade de suas experiências místicas, e finalmente da adolescente Anne Frank, que passou vários meses escondida em um prédio de Amsterdam durante os quais escreveu um diário que, após sua morte no campo de Bergen-Belsen, tornou-se mundialmente conhecido como hino de esperança na humanidade em meio à desumanidade do nazismo. 

Foi a escrita também a salvação da escritora estadunidense Joan Didion, que vivia positiva parceria com o marido John, também escritor, e derramava sua maternidade amorosamente sobre a filha adotada, Quintana. Tudo foi interrompido pela morte brusca de John com um fulminante infarto, seguida pela morte de Quintana, acometida por uma série de problemas de saúde rapidamente agravados com sucessivas hospitalizações.  O caminho encontrado por Joan para lidar com o luto foi escrever.  E enquanto sua saúde se fragilizava pelo pouco que se alimentava e pela tristeza que a consumia, escreveu o romance “O ano do pensamento mágico”, sucesso de vendagem nos Estados Unidos. 

Joan Didion escreveu este livro após a morte de Quintana, mas o livro narra apenas a doença da jovem e não sua morte.  Esta será enfrentada através do texto, dois anos depois, com o livro “Noites azuis” (Blue nights). Ali, enfim, a escritora faz a passagem do luto de volta à vida. E declara que sem a escrita isso não teria sido possível.

A escrita de si é algo que o ser humano pratica há séculos e em muitas circunstâncias. Os grandes autores de ficção transportam a seus personagens suas inquietudes e sofrimentos. Assim exorcizam seus medos e ajudam os leitores a identificá-los e com eles lidar.

Em situações limite, a escrita é o meio pelo qual a vítima encontra forças para resistir ao carrasco e eventualmente triunfar sobre ele.  A escrita conserva a narrativa da experiência, da dor, do desespero.  E também registra a esperança que conserva a vida em movimento mesmo sob a ameaça inexorável da morte e da destruição. 

Escrever é um ato de afirmação da vida.  Quem escreve diante de um projeto de morte que se abate sobre si próprio, desafia esse projeto reafirmando a vida, que teima em acontecer mesmo sob o tacão da ameaça e da violência. É igualmente testemunha de um futuro. Escrever é produzir algo que as gerações futuras poderão ler. É registrar as próprias experiências e oferecê-las como laboratório onde outros e outras poderão elaborar as suas. 

Diante da efemeridade das coisas e do tempo, a escrita igualmente é terapêutica por ser algo que permanece, que é fixado para não ser perdido. No caso das escritoras que mencionamos, as quatro judias europeias e a estadunidense, a morte – própria e alheia -  interrompeu suas vidas.  Mas a escrita as sobreviveu.  As sobrevive.  E não deixa se perder na noite dos tempos suas preciosas experiências e admirável resistência. 

Outros poderão ler e aprender.  A leitura será um revisitar doloroso ou gozoso do registro produzido pelas testemunhas que vivenciaram os fatos e os narram e interpretam.  E assim se poderá não repetir chacinas, tragédias.  E, mais do que isso, criar universos novos onde a vida triunfe sobre a morte. 

 

 Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), entre outros livros

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