Frei Betto
Jesus teria herdado dos essênios
o celibato "por amor ao Reino" (Mateus 19, 10-12. Criticava, porém,
suas purificações formalistas que os impedia de amar o próximo e reconhecer que
no coração de uma prostituta pode haver mais pureza do que em todas as abluções
rituais.
Em seu clássico
Jesus, publicado no início do século XX, Rudolf Bultmann admitiu que
"agora já não podemos conhecer qualquer coisa sobre a vida e a
personalidade de Jesus, uma vez que as primitivas fontes cristãs não demonstram
interesse por qualquer das duas coisas, sendo, além disso, fragmentárias e,
muitas vezes, lendárias; e não existem outras fontes sobre Jesus".
A autoridade intelectual de Bultmann pôs
uma pedra sobre esse veio de pesquisa. Interessar-se pelo Jesus histórico era
perda de tempo. Porém, em 1953, Ernst Käsemann quebrou o tabu na trilha do
método de estudo bíblico de Orígenes que, no século III, considerava-se um
caçador que andava silenciosamente pela floresta até pressentir alguma coisa se
movendo. Então, partia em sua perseguição.
A vantagem de Käsemann e de todos que se
debruçaram sobre o Jesus histórico na segunda metade do século XX, é que,
agora, muitas coisas se moviam e traziam luz onde antes havia trevas. Em 1947,
três beduínos pastoreavam seus rebanhos a oeste do Mar Morto. Um deles viu dois
buracos na encosta de um penhasco e atirou uma pedra no menor. Escutaram um
som, como se a pedra tivesse batido em jarras de barro. Dias depois, o mais
jovem escalou sozinho o penhasco e enfiou-se pela caverna. Nas jarras não havia
nenhum tesouro. Mas uma delas continha dois embrulhos de pano e um rolo de
couro. Os beduínos guardaram o achado em um saco e o amarraram, por várias
semanas, no pau de uma tenda próxima a Belém. Depois, passaram os embrulhos a
um receptador de Belém, o sapateiro Kando que, sem saber o valor do que tinha
em mãos, mostrou-os a pessoas que se interessavam por antiguidades. Os dois
embrulhos de pano e o rolo de couro eram os primeiros Manuscritos do Mar Morto
a serem descobertos. Logo, outros documentos foram encontrados em diversas
cavernas.
James H. Charlesworth rejeita o método da
dissimilaridade ou princípio de descontinuidade, que procura destacar Jesus
como figura singular, como um peixe fora das águas judaicas de seu tempo. Para
o autor, "Jesus de Nazaré, como homem histórico, tem que ser visto dentro
do judaísmo" (p. 10, grifo do A.). Embora se interessasse, como cristão,
pelas questões teológicas referentes a Jesus, ele se detém, naquela obra, nos
limites da historiografia. Os documentos que analisa permitem conhecer melhor o
contexto em que Jesus viveu e, portanto, o significado de algumas de suas
palavras e ações.
Jesus era muito mais judeu do que supomos -
é o que o livro, baseado em farta e erudita documentação, demonstra em
linguagem acessível aos leitores em geral. Não se trata de enfocar Jesus
e o judaísmo, mas Jesus no judaísmo.
O autor argumenta que já dispomos de
recursos científicos suficientes para ter alguma ideia da compreensão que Jesus
tinha de si mesmo. Comprova, por exemplo, que o título "Filho do
Homem", frequente na boca de Jesus, não é uma criação cristã, já que é
encontrado em documentos judaicos anteriores à destruição de Jerusalém pelos
romanos, entre os anos 66 e 70. Todos os evangelhos são posteriores àquela
data. Numa exegese detalhada da intrigante Parábola dos Vinhateiros Homicidas
(Marcos 12, 1-12), não reluta em defender que Jesus se sentia adotado como
filho por Deus.
Charlesworth não pesquisa Jesus para
mostrá-lo "como um herói do passado a ser admirado" (p. 31), mas para
destacar a veracidade de certos fatos da vida dele, como a escolha dos
discípulos em um contexto em que o habitual era os alunos escolherem o mestre.
Enquanto seus contemporâneos cultuavam um Deus distante, Jesus tratava Deus
como um Pai muito íntimo, repleto de compaixão e amor, especialmente para com
os pobres e pecadores. Isso destoava dos judeus da época, que clamavam por
vingança divina e exigiam a punição dos maus.
Tendo convivido com grupos essênios - pois
4 mil deles espalhavam-se pela Palestina -, deles Jesus teria herdado o
celibato "por amor ao Reino" (Mateus 19, 10-12). Criticava, porém,
suas purificações formalistas que os impedia de amar o próximo e reconhecer que
no coração de uma prostituta pode haver mais pureza do que em todas as abluções
rituais. E com eles tinha em comum, além do tempo e do lugar (Palestina), as
mesmas antigas tradições hebraicas, como a leitura de Isaías e a reza dos
Salmos.
A conclusão do autor aplaca o receio dos
que temem a verdade histórica: "O fato de se examinarem documentos
contemporâneos de Jesus e de se estudar arqueologia, no entanto, nunca deve ser
encarado como uma tentativa de provar ou dar suporte a qualquer fé ou teologia.
Uma fé autêntica não precisa disso. Filólogos, historiadores e arqueólogos não
podem dar aos cristãos um Senhor ressuscitado, mas podem ajudar a compreender
melhor a vida, o pensamento e a morte de Jesus" (p. 142).
O curioso é que, dos documentos analisados
no livro, os três mais importantes - Pseudo-epígrafos, Manuscritos e Nag
Hammadi - não foram descobertos por arqueólogos ou pesquisadores, mas por
gente simples do povo. Hoje, nas Comunidades Eclesiais de Base da América
Latina, é essa mesma gente simples que relê a Bíblia e, graças à assessoria
científica de exegetas como Carlos Mesters, descobre que o Jesus da fé, o
Cristo, se faz de novo presente na história através dos que oram "Pai
Nosso" porque, juntos, buscam o "pão nosso".
Frei
Betto é escritor, autor de “Reinventar a vida” (Vozes), entre outros livros.
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