por FREI ALOÍSIO FRAGOSO
Nestes dias pude ler uma matéria das mais
esclarecedoras para a nossa compreensão sobre a realidade. Rita de Almeida,
psicanalista, é o nome da sua autora e seu mérito é fazer-nos entender os fatos
reais do momento presente em suas causas subterrâneas, conhecer a alma destes
fatos e de seus protagonistas. As idéias dela me inspiraram esta reflexão.
Faz alguns anos, um escritor iraniano,
Salman Rushdie, publicou uma obra intitulada "Versos Satânicos". Por
conta disso tornou-se um fugitivo permanente da morte, decretada por grupos
islâmicos. Qualquer pessoa, em qualquer parte do planeta, estava autorizada a
matá-lo, em nome de Alá e de seu profeta Maomé.
Tempos depois, de algum de seus
esconderijos, ele denunciou a existência de um grave obstáculo boicotando os
esforços de quem se empenha pela utopia da paz universal. O núcleo deste
problema estava em um Ser Supremo chamado Deus. Deus era o nome do problema,
segundo ele.
Quem o lê com atenção e sem preconceitos
se dá conta de quanto sua denúncia encerra de sério e desafiador para uma
consciência religiosa esclarecida.
Uma coisa é Deus, outra coisa é o nome que
lhe damos, outra coisa ainda, é o uso que fazemos deste nome. Nós cristãos, por
exemplo, temos uma perfeita definição: "Deus é Amor". No entanto,
nestes mais de 20 séculos, o seu nome tem sido instrumentalizado em favor de
objetivos claramente opostos a esta concepção: assustar crianças, atormentar
consciências, levar dissidentes à fogueira, manter déspotas e tiranos no poder,
legitimar guerras, espalhar doutrinas expressamente condenadas por Jesus.
Hoje em dia, frente à perda quase total de
referências humanas capazes de manter vivas suas esperanças e conferir-lhe
segurança, um grande número de pessoas se rende ao fascínio de líderes
paranóicos que se arvoram em novos messias. O sucesso deles está na habilidade
de ocupar o lugar de Deus.
É aí que descobrimos a parte de razão que
cabe ao escritor iraniano. A divindade que ele acusa não é o Deus único e
verdadeiro da nossa Fé, o Deus revelado por Jesus Cristo e seus apóstolos. É
antes o "Deus" projetado nestas figuras idolátricas, travestidas de
divindade.
Em sua dissertação, a psicanalista Maria
Rita pergunta: "O que faz tantas pessoas depositarem sua fé e se
entregarem de modo subserviente a esta espécie de charlatões"? E analisa a
resposta de Freud: "eles representam o recurso humano mais primário de
lidar com o desamparo....o lugar mais confortável psiquicamente de conviver com
afetos como angústia e medo". Daí a adesão irracional. "Não há
argumento suficientemente forte para mostrar a verdade a quem não deseja
encontrá-la, mesmo que isso signifique um risco de morte", escreve ela.
"Preferem arriscar-se a uma morte real do que a uma morte subjetiva, que
seria ter de admitir que estavam vivendo uma grande mentira".
Por trás destes sentimentos se escondem os
ideólogos fascistas, prontos a manipular o sagrado com eloquência e eficácia.
Quem desconfiará da segunda intenção oculta na legenda "Deus acima de
tudo"? Quem se lembrará de associá-la a outras legendas equivalentes:
"Alemanha acima de tudo" (Hitler). "América grande
novamente" (Trump)?
Daí muitos são induzidos a aceitar que Deus
permite os desmandos e crimes destes seus ídolos; antes isso do que admitir que
se deixaram enganar por uma torpe mentira.
Chegamos ao absurdo de ter que defender a
inocência de Deus, como se o Todo Poderoso não se bastasse em sua própria
defesa. Na verdade, estamos nos defendendo de nós mesmos, pelo que fizemos com
o seu nome. Criamos um Deus à nossa imagem e semelhança. Um Deus para o
ocidente, outro para o oriente. Um Deus para os brancos, outro para as demais
raças. Um Deus para os tubarões, outro pra raia miúda. Um Deus para a guerra,
outro para a paz. Os bilhões de dólares que financiam as guerras trazem em cada
cédula a inscrição "In God we trust" (em Deus nós confiamos).
O realismo da pandemia do coronavirus
obriga-nos a purificar nossas idéias de Deus. O único nome que tem sentido
invocar, neste momento, é o "Pai Misericordioso e Compassivo". E o
invocamos, em meio aos esforços para combater a pandemia, sabendo, por
experiência milenar, que a Fé, juntamente com o Amor, é a maior força de que
dispomos nesta vida.
Enquanto isso, esses falsos deuses, como
sugere a Bíblia, "tem cabeça de ouro maciço, tronco de prata, coxas de
bronze e pernas de barro" Dan.2,32.
Não se sustentam.
E, da nossa parte, rezamos com o sl.37:
"Todas as nossas angústias, Senhor, estão na vossa presença. E nenhum
gemido de ninguém na face da terra será oculto aos olhos do Senhor". Amém.
Frei Aloísio
Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.
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