Por Frei Aloísio
Para esta nova REFLEXÃO vou precisar da
compreensão dos leitores e leitoras. É que pretendo abordar, nesta semana da
família, um assunto sobre o qual a única linguagem confiável é a da
experiência. Confesso que não a tenho suficientemente. Desde muitos anos, não
convivo numa família constituída por laços de sangue.
A quarentena do coronavirus reagrupou as
famílias em um isolamento compulsório, para uns benfazejo, para outros,
conflitivo. O que daí resultou e
resultará para o futuro, decerto será objeto de muitos estudos, pesquisas e
surpresas. Atrevo-me a apreciar um ponto específico, em meio a muitos outros
que se oferecem a quem entenda melhor da matéria.
O que está acontecendo em grupos
familiares compulsoriamente reunidos, onde convivam pessoas com opiniões e
posições antagônicas e mesmo irreconciliáveis? E quando suas controvérsias
incidirem nos acontecimentos polêmicos oriundos da última campanha
presidencial? Não se trata do direito constitucional inalienável do voto nem
também do resultado final das urnas. Trata-se antes de suas sequelas, de seus
efeitos colaterais. Estes detonaram fenômenos inesperados. Liberaram segredos ocultos nos porões das
consciências individuais. Desarquivaram traumas pessoais há muito tempo
represados. Enfim, acenderam uma luz para enxergar realidades ainda não
percebidas.
Para muitas famílias a surpresa foi
grande: havia um mundo de valores separando
parentes, valores fundamentais que determinam a escolha de caminhos nos
mais importantes segmentos da vida em formação: educação dos filhos, exercício
da profissão, visão do mundo, sentido da vida, prática religiosa.
Sempre que estas questões se contrapõem,
torna-se difícil construir algo em comum para o futuro. Daí a dificuldade de
voltar a reunir estes familiares nos costumeiros e aprazíveis encontros
fraternos. Não dá para sentar-se à mesma mesa e comer o mesmo pão e cantar os
mesmos hinos e rezar a mesma oração, quando os convivas precisam reprimir o
debate de assuntos relevantes em troca da convivência pacífica.
Vale aqui resgatar uma palavra de Jesus
que anda (mal)dita em bocas infectadas pelo vírus do poder político:
"Conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará".
Se passarmos por cima da Verdade,
evitando-a, contornando-a, sob qualquer
pretexto, podemos salvar as aparências, jamais construir a unidade.
A vida mesma, em seu movimento, nos ensina
uma coisa: toda convivência humana se nutre de relações pessoais. Nas famílias,
durante anos, esta convivência é alimentada por laços de sangue, por
recordações do passado, por variados lazeres, por afetos e carinhos, pela mesa
e pelo pão.
Com o passar dos anos, no entanto, e o
amadurecimento das pessoas, estes sentimentos deixam de bastar. As amizades
passam a ser selecionadas e consolidadas com base nos valores mais do que nos
afetos. Torna-se quase impossível aprofundar uma amizade com alguém que não
comunga em nada comigo, seja nos
princípios morais, na visão de vida, nos ideais e utopias, e outros pontos essenciais da vida, e logo fica
clara a incompatibilidade de convicções.
Chega o momento em que estas convicções se
radicalizam a ponto de se
converterem em intolerância e
paixão irracional. As discussões começam a destilar preconceitos e antipatias, arruinando os
fundamentos da paz.
Nestas circunstâncias, o distanciamento
físico acaba sendo uma consequência natural, uma estratégia para evitar
rupturas graves, irreversíveis. Este distanciamento, evidentemente, não diz respeito à família
nuclear, durante o tempo em que o convívio permanente de pais, filhos, irmãos é
constitutivo e garante a estabilidade e segurança comum.
E onde fica o amor nisso tudo?
(A esta altura, o espaço limitado
obriga-nos a uma pausa neste assunto e convida-nos a dar-lhe continuidade na
próxima REFLEXÃO)
Até lá, reflitamos no que Jesus quis dizer
em Lc.11,27: "Ouvindo as suas palavras, uma mulher do povo levantou a voz
e exclamou, maravilhada: bem-aventurados o ventre que te gerou e os peitos que
te amamentaram! Ao que Jesus respondeu: antes bem-aventurados os que ouvem as
minhas palavras e as põem em prática".
Amém.
Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da
Tenda da Fé e escritor.
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