Marcelo Barros
“Combati o bom combate, terminei a corrida,
guardei a fé” (II Tm 4, 7).
Para quem
conheceu de perto e teve a graça de conviver com Pedro Casaldáliga, não será fácil
ver o mundo sem ele. Afinal, desde que, como padre ainda jovem, chegou em São
Félix do Araguaia, em outubro de 1971, penso que nunca ninguém o encontrou sem,
de alguma forma, ficar marcado. No contato com ele, as pessoas abertas ao apelo
divino da justiça e da paz receberam sempre alento e força. Aqueles que, por
interesses pessoais ou por alienação da vida, não aceitaram o anúncio do reino,
o rejeitaram. Alguns o odiavam. Diante dele e de sua palavra e suas posturas
proféticas, era quase impossível ficar indiferente.
A quem, na busca
espiritual, teve a graça de encontrá-lo ao menos uma vez e mais ainda para muitos
que tiveram o privilégio de conviver com ele ou acompanhá-lo na missão, Pedro
sempre testemunhou o amor divino como
força transformadora das pessoas e da sociedade.
Neste momento
de sua Páscoa definitiva, muitos irmãos e irmãs lembram coisas bonitas que
viveram com ele. Outros tecerão elogios a seus poemas e a seus escritos que
“sempre dão o que pensar”, como ele intitulou um dos volumes de seu diário nos
anos 80.
Pode ser que, depois de alguns dias, eu
consiga escrever mais alguma coisa. Hoje, a emoção ainda não me deixa escrever,
sem misturar as letras com as lágrimas da saudade, da gratidão imensa e da ação
de graças a Deus por ter, durante anos decisivos da minha vida, podido ter nele
um irmão mais velho, um conselheiro espiritual e um mestre de vida.
Junto com Dom
Tomás, foi ele que fez a mim e a mais dois irmãos beneditinos retomar o projeto
de um mosteiro ecumênico e inserido no meio dos pobres quando pensávamos que,
na Igreja Católica, não conseguiríamos. De fato, no começo dos anos 2000, aquele
projeto tinha mesmo se tornado bem mais difícil. No entanto, em 1984, Pedro e
Tomás nos aconselharam a recomeçar de forma nova o estilo de vida monástica
inserida que os monges franceses começaram em 1961 em Curitiba. A partir dali,
o mosteiro da Anunciação do Senhor foi um sinal ecumênico e pascal para as
Igrejas do Brasil e para os movimentos sociais. Como gostaria de encontrar o poema de Pedro
sobre os monges de pés descalços cujo mosteiro é o mundo.
Neste momento
no qual entregamos a Deus a sua vida consagrada e plantamos o seu corpo na mãe
Terra como semente de ressurreição, é importante tentarmos descobrir para nós e
para as comunidades a herança espiritual que Pedro nos deixou:
1 - Pedro nos
ensinou e nos propôs a viver a fé, descentrados de nós mesmos e da própria
Igreja. Ele vivia uma adesão contínua e total a Jesus Ressuscitado no estilo de
uma Santa Teresa de Ávila, mas manifestando-o presente nas pessoas mais pobres,
na opção pela justiça e pela libertação de todos/as e na comunhão com a Terra,
as águas e todo o universo. Pedro
expressava isso ao dizer: Absoluto mesmo só Deus e a fome do povo.
2 – Desde o
começo do seu ministério, Pedro insistia: Igreja é sempre e principalmente
Igreja local. Ah, se Pedro pudesse ter estado no Sínodo da Amazônia e nos
revelado como já nos anos 70, ele propunha “amazonizar” a Igreja. E para ele,
Igreja de Jesus era martírio. Ele nos deixou uma profunda espiritualidade
martirial. A missão não é querer transformar ninguém em cristão. É semear
ressurreição nas vidas nossas e das pessoas.
3 – Pedro nos
passou o amor apaixonado aos povos indígenas e este amor se manifestava em todo
o seu estilo de vida, até o fato de querer ser enterrado no cemitério Karajá às
margens do Araguaia.
Não tenho como neste momento não retomar com
carinho filial um dos seus poemas que fala da morte, mas também da ressurreição
como rota de vida:
Eu morrerei de pé como as
árvores.
Me matarão de pé.
O sol, como testemunha maior,
porá seu lacre
sobre meu corpo duplamente
ungido.
E os rios e o mar
serão caminho
de todos meus desejos,
enquanto a selva amada sacudirá,
de júbilo, suas cúpulas.
Eu direi a minhas palavras:
- Não mentia ao gritar-vos.
Deus dirá a meus amigos:
- Certifico
que viveu com vocês esperando
este dia.
De golpe, com a morte,
minha vida se fará verdade.
Por fim terei amado!
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