Maria Clara Lucchetti Bingemer
A humanidade está ficando mais velha, dizem as estatísticas. E
isso parece que é bom, porque só atinge a velhice quem vive mais tempo.
Pelo menos parece ser o que todos buscamos: viver muito, desfrutar
até onde for possível das alegrias que significam viver, existir. E adiar
a morte, conhecida por muitas culturas, notadamente a ocidental. A poesia
a identificou como “a indesejada das gentes”. E mesmo os escritores
bíblicos a chamaram por nomes negativos, como o apóstolo Paulo: “a última
inimiga a ser vencida”; e o autor do último livro da Bíblia, o Apocalipse, que
a inclui entre os quatro cavaleiros que anunciam a catástrofe final, ao lado da
fome, da guerra e da peste.
Por isso, a longevidade é uma bênção e viver muitos anos um prêmio a que
todos aspiram. Assim, o livro do Êxodo exorta o israelita a honrar o pai e a
mãe “para que se prolonguem os seus dias na terra que o Senhor teu Deus te dá”.
O livro dos Provérbios promete que quem aceita as palavras divinas verá seus
anos de vida multiplicados, afirmando igualmente que o galardão da humildade e
o temor do Senhor são riquezas, honra e vida longa. No livro dos Salmos, é
prometido a quem guarda a língua e os lábios do mal e da mentira, praticando o
bem, largos dias para ver esse bem florescer e frutificar. E ao justo que
invoca o Senhor, este estará com ele na angústia, dando-lhe abundância de dias
e mostrando-lhe a salvação.
O Novo Testamento seguirá essa rica tradição judaica. Toda a
pregação e ação de Jesus de Nazaré é curativa, procurando dar às pessoas mais
tempo de vida, e vida plena. Assim é que vemos nos Evangelhos curas de
várias doenças, físicas e mentais. Há narrativas do poder de Jesus ressuscitando
mortos como o filho da viúva de Naim e de seu amigo Lázaro. Nos escritos
paulinos, é resgatada a orientação da Bíblia Hebraica sobre a honra que é
devida aos pais. A quem isso pratica, como diz a Carta aos Efésios, será
dada uma vida longa sobre a terra.
Não se encontrará no texto bíblico nenhuma afirmação de depreciação à
vida. Pelo contrário, há sempre uma valorização da mesma, encarando o
fato de ela ser longa como uma bênção de Deus, que não quer a morte de ninguém,
nem do pecador, mas que ele viva. A tradição cristã seguiu fiel a essa
revelação divina destacando-se pelo serviço aos pobres, dando-lhes alimento e
abrigo, a fim de sustentar-lhes e prolongar-lhes a vida.
A Igreja foi pioneira na edificação de hospitais que pudessem cuidar dos
doentes e devolver-lhes a saúde quando a morte os ameaçasse. E os
pensadores de todas as configurações, assim como os profetas judeus e cristãos,
sempre denunciaram qualquer mecanismo que pretendiam agredir a vida dos pobres
e dos vulneráveis, trazendo-lhes a morte prematura e indesejada, impedindo-os
de chegar à plenitude dos seus dias, vendo os filhos nascerem e crescerem e os
filhos de seus filhos encherem a casa de alegria e fecundidade.
Na verdade, o anjo da morte é o mesmo que detém a paternidade da mentira
e do mal. A morte é vista pelo escritor bíblico como fruto do pecado,
devendo, portanto, ser temida e exorcizada como um mal. E a morte dos
anciãos é sempre chorada e sentida, ainda que haja o consolo de terem chegado
ao fim de seus dias. Do mesmo modo, a morte do jovem, por necessidade,
por violência, por injustiça é repudiada e rejeitada por todo aquele ou aquela
que deposita sua confiança no Deus da vida.
Durante a pandemia que vivemos, temos tido a oportunidade de ver os
idosos sendo mais ameaçados pelos efeitos devastadores do vírus que a todos
amedronta. Vimos também cenas edificantes de profissionais da saúde dando o
melhor de seu saber e energias para salvar essas vidas mais fragilizadas pela
idade e devolvê-las ao convívio de seus familiares e parentes. Grupo
prioritário para a vacinação, foi bonito ver os idosos aliviados e alegres por
poder enfim ter acesso às doses daquela que se tornou a única esperança contra
esta grande ameaça que não poupou nenhuma parcela da humanidade.
Por isso, sentimo-nos tão chocados ao ouvir declarações de homens
públicos reclamando da longevidade das pessoas que supostamente quebraria o
sistema e o Estado. A queixa de que “as pessoas querem viver 100 anos”,
anatematizando o desejo vital mais característico do ser humano agrediu nossos
ouvidos e nossos olhos. Incrédulos, nos custa crer no que ouvimos. A
graça de poder viver mais tempo então é vista como uma ameaça aos cofres
públicos? O que incapacitou o atendimento do setor público não foi a pandemia,
mas sim o avanço na medicina e o direito à vida? O Estado não aguenta que
as pessoas hoje vivam mais e desejem viver mais?
Difícil de acreditar. Em todo
caso, como resposta a isso, a carta encíclica Fratelli Tutti, do Papa
Francisco, de recente publicação, responde a isto quando diz no nº 18 do texto
que as pessoas já não são vistas como um valor...especialmente...se “já não
servem” (como os idosos). E no nº 19: “o abandono dos idosos numa dolorosa
solidão exprime implicitamente que tudo acaba conosco, que só contam os nossos
interesses individuais.” E recordando as vítimas da pandemia acrescenta no nº 35:
“Oxalá não nos esqueçamos dos idosos que morreram por falta de respiradores, em
parte como resultado de sistemas de saúde que foram sendo desmantelados ano
após ano.”
O Papa considera que os idosos estão
entre os “exilados ocultos” de nossas sociedades da abundância que se tornam
desumanas com a obsessão de gerar riquezas e consideram como peso as pessoas
que entendem que já não podem contribuir. Viver 100 anos e até mais é
justo e desejável, sim. Vidas humanas não são descartáveis. A
garantia de uma vida humana é o próprio Deus da vida que nelas soprou seu
Espírito e deseja vê-las cheias de dias, contribuindo com sua experiência e
sabedoria para a construção da memória sem a qual a humanidade se perde e
deteriora. Como diz o salmo 92: “Mesmo na velhice darão fruto, permanecerão
viçosos e verdejantes”.
Nossa utopia deveria ser não desejar
que encurtem os dias das pessoas para que as contas fechem na Previdência e no
serviço público. Mas poder dizer como o salmista: “Já fui jovem e agora
sou velho, mas nunca vi o justo desamparado nem seus filhos mendigando o pão.”
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento
de Teologia da PUC-Rio e autora de Santidade: chamado à humanidade,
São Paulo, Editora Paulinas, entre outros livros.
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