Eduardo Hoornaert
A
descoberta do caráter pentecostal das origens cristãs vem a postular a
construção de narrativas próprias. Como sabemos que a mensagem cristã se
propaga mais por meio de narrativas que de doutrinas, surge diante de nós a
seguinte pergunta: quais as narrativas, entre muitas que tratam das origens do
cristianismo, capazes de abarcar a multiplicidade de formas pentecostais em que
o cristianismo se reveste hoje? Trato aqui especificamente de três narrativas
das origens, uma primeira centrada em Nazaré, uma segunda em Jerusalém e uma
terceira em Corinto. Prossigo chamando a atenção para a particularidade da
expressão ‘Espírito Santo’ e para a necessidade de se estudar a ‘tradição’. Termino
dizendo algo sobre ‘pentecostalidade’.
1.
Um Sopro ‘do Senhor’ em Nazaré.
O Evangelho de Lucas
conta que Jesus, ao retornar à sua aldeia natal depois da experiência no Sul do
país (na região do Jordão) com João Batista, vai, como de costume, à sinagoga
no sábado. Como já é rabi, habilitado a ler e explicar a Bíblia, o servente lhe
entrega um rolo que contém as profecias de Isaías. Ele escolhe dois trechos (Isaías
61, 1-2 e 58, 6):
Um Sopro do Senhor sobre mim.
Por Ele fiquei encarregado
De trazer uma boa mensagem aos pobres.
Ele me enviou, e por isso proclamo
liberdade aos presos, visão aos cegos, libertação
aos oprimidos.
Proclamo publicamente um Ano de Favores (Lc 4, vv. 16-18).
Jesus entrega o rolo ao
servente e se senta. Na sinagoga, todos os olhos o fixam. Ele começa: ‘como
vocês veem, hoje essa Escritura se realiza’ (vv. 20-21). Eis a primeira
manifestação do Sopro de Deus na vida de Jesus. Os aldeões se sentem atingidos,
pois compreendem a alusão: ‘aqui – em Nazaré - não há boa mensagem para os
pobres, nem liberdade para os presos, nem recuperação de visão para os cegos,
nem libertação dos oprimidos, nem Ano de Favores’. ‘Vocês preferem seguir a
Lei, não escutam o ‘vento’ que vem de Deus’. Para ainda agravar as coisas,
Jesus dá dois exemplos de como a Escritura de Isaías se realiza: nos tempos de
Elias, havia muitas viúvas em Israel e as pessoas passavam fome, por todo o
país. Mesmo assim, não é para nenhuma (das viúvas de Israel) que Elias
foi enviado, mas para uma viúva de Sarepta de Sidon (v. 25). Havia
muitos leprosos em Israel. Mesmo assim, nenhum deles foi curado (por
Eliseu), mas sim o sírio Naaman (v. 27). O sopro de Deus não
considera um ‘povo eleito’ privilegiado.
É demais: todos na
sinagoga se enchem de furor ao ouvir essas palavras (v. 28). Um
violento sentimento de ódio se ampara da multidão, uma histeria coletiva. Eles o conduzem ao declive de uma colina
sobre a qual a cidade está construída, para lançá-lo no precipício. Mas
ele passa por meio deles e se afasta.
Jesus não é um ‘dos
nossos’? ‘Então, que nos defenda, nos ampare, já que tem esses poderes todos’.
Os aldeões vêm em Jesus um curandeiro milagreiro, como tantos outros que andam
pelas aldeias da Galileia. Não percebem a ação do Sopro de Deus.
Na versão de Marcos se
percebe a mesma perplexidade, por parte dos aldeões. Muitos dos que o
escutam ficam confusos e dizem: ‘Donde ele tira tudo isso? Donde lhe vem
essa sabedoria? E os gestos fortes (milagres, gestos de poder) operados
por suas mãos? Ele não é o carpinteiro, o filho de Maria, irmão de Tiago, José,
Judas e Simão? Suas irmãs não vivem entre nós? Enfim, ficaram sem saber o que
pensar (Mc 6, 1-6).
Mas, como na versão de
Lucas, Jesus não recua. Ele vai em cima: um profeta só é desprezado em sua
terra natal, em sua família, em sua casa. O Sopro de Deus nele provoca uma subversão
dos valores que a aldeia cultiva: a família, a ordem, a convivência silenciosa
com os que não conseguem se enquadrar na sociedade: doentes, mendigos, cegos,
surdos, doidos. Jesus sente repulsa com o comportamento de seus antigos
companheiros na aldeia: não pôde fazer aí nenhum milagre. E Marcos conclui: Jesus estranha a
desconfiança dos aldeões.
Aparece aqui um homem que
se distancia de seus ex-vizinhos aldeões. Para ele, o fato de provir de uma
aldeia esquecida do mundo, dentro de uma família normal de camponeses,
conhecido por serviços manuais, não lhe impede sentir o Sopro de Deus passando
por sua vida. Pelo contrário, o
ocultamento social demonstra quem é Deus e como Ele age no mundo.
2.
Um Sopro de Deus em Jerusalém.
A
segunda história é mais traumatizante. Mais decisiva também. Ela começa com os versículos
46 a 50 do capítulo 14 do Evangelho de Marcos: Quando os emissários do Grande Sacerdote puseram as mãos sobre Jesus e
o prenderam, todos os seus
discípulos o abandonaram e fugiram (Mc
14, 46-50). Todos abandonam Jesus naquela fatídica semana que antecede a tradicional
Festa da Páscoa judaica, por volta do ano 30, e que culmina com sua morte. Os
discípulos deixam Jesus morrer só. Ele
morre como um criminoso, executado segundo as leis estabelecidas. Seu corpo é jogado
numa fossa comum. O Evangelho de João conta que o próprio Jesus previu esse
desenlace: Vocês se dispersarão, cada um
de seu lado, e me deixarão só (Jo 16, 32). Simão Pedro, que ainda teima em acompanhar
de longe o drama, não aguenta nem umas palavras de suspeita por parte de uma servente
do Grande Sacerdote: Não o conheço, não
sei de que você está falando (Mc 14, 68). E acaba fugindo também. Retorna à
região do lago de Genesaré, na companhia de alguns companheiros pescadores,
igualmente ex-discípulos de Jesus. Ali resolve voltar à pescaria: ‘eu vou à pesca’. ‘Vamos como você’ dizem os
outros (Jo 21, 3).
Mas
nenhum deles consegue esquecer Jesus. Nem Simão, nem seu irmão André, nem Tiago
e João, os filhos de Zebedeu. Mas o projeto acabou. Foi bonito, mas acabou. O que
eles, pescadores iletrados, vão argumentar diante das mais altas autoridades,
que tinham declarado que Jesus era um criminoso? Contudo, a memória persiste, inesquecível,
fascinante. A figura de Jesus não os deixa em paz. A memória dele é alimentada
a cada sábado por leituras feitas na sinagoga: leituras de Isaías, dos Salmos, dos
Profetas, que falam em ‘servo sofridor’, ‘servo de Ihwh’, ‘elevado por Deus’,
‘feito Senhor’. Será Jesus um eleito de
Deus enviado ao mundo? Martela a cabeça de Simão a palavra de Jesus, três vezes
repetida: Simão, filho de João, se me
amas, apascenta minhas ovelhas (Jo 21, 15-17). A situação angustiante dura meses,
talvez mais de um ano. Voltar a Jerusalém? Nem pensar.
Até
que aparece, no ano litúrgico judeu, uma festa tradicional, celebrada em
outubro, que até supera a festa da Páscoa em termos de popularidade: o Sukkôt (que
significa: tendas, cabanas), em que se misturam as mais variadas memórias: a colheita
dos frutos do campo, a vida em tendas dos hebreus fugitivos do Egito, a chegada
ao Monte Sinai após ‘cinquenta dias’ de caminhada após a escapada, ocasião em
que Moisés recebe a Torá (Ex 15, 1).
No
Sukkôt, Jerusalém se enche de peregrinos, muitos vindos de longe. O grupo dos
apóstolos galileus pondera: ‘podemos nos aventurar, pois ficaremos despercebidos
no meio de tanta gente. Aí podemos visitar os irmãos de Jerusalém’. Irmãos que
ficaram na cidade hostil e se recolhem numa casa particular, com medo dos
‘judeus’.
Então acontece a famosa virada, descrita por Lucas
em seus ‘Atos dos Apóstolos’, escritos por volta do ano 120 dC: Estavam todos reunidos no mesmo lugar,
quando, de repente, um estrondo. Parecia a passagem de um vento violento a
invadir a casa onde se encontravam.
Eles viram uma espécie de línguas de fogo se repartir e se pousar sobre cada
um. Nesse momento, todos, cheios do Sopro Santo, falavam o que o Sopro lhes
dava a dizer, em línguas estrangeiras (Atos 2, 1-4).
Muita gente, ao ouvir o estrondo, corre ao local. Gente
proveniente
da diáspora judaica, falando línguas diferentes
(todas de raiz semita), enquanto os apóstolos só falam o aramaico. Abre-se a
porta, os apóstolos comentam o ocorrido, e todos entendem o que eles dizem. ’Como é, pois, que os ouvimos falar, cada um
de nós, no próprio idioma em que nascemos? Partos, medos e elamitas, habitantes
da Mesopotâmia, da Judéia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da
Panfília, do Egito e das regiões da Líbia próximas de Cirene; romanos que aqui
residem, tanto judeus como prosélitos, cretenses e árabes, nós os ouvimos
apregoar em nossas próprias línguas as maravilhas de Deus’. (Atos 2, 8-11). No versículo 14 se conta
que Pedro se levantou com os onze e, com
voz firme, se dirigiu à multidão presente. Uma fala contundente, acusadora
mesmo: Esse mesmo Jesus, que vocês
crucificaram, Deus, ele mesmo, o fez Senhor e Cristo (o termo, em aramaico,
significa: ‘ungido’) (v. 36). E termina perguntando: O que fazer? Ele mesmo responde: Pensar de outro modo (em grego: metanoein, daí metanoia) (v. 37).
Mais adiante, em 3, 19, Lucas escreve que precisa também agir de outro modo (em grego: epistrefein). Um pensar e um agir ‘diferente’.
O
resultado é excepcional: dos 120 aderentes ao novo movimento, assinalados em
Atos 1, 15, se pula de vez para 3 mil depois do discurso de Pedro em
Pentecostes (2, 41) e para 5 mil logo depois (4, 4). Aderiram, no Senhor, multidões de homens e mulheres (5, 14); A multidão dos crentes era um só coração e
uma só alma (4, 32); O número dos
discípulos multiplicava-se enormemente em Jerusalém (6, 7). Sabemos que
Lucas gosta de exagerar, mas, mesmo assim, se trata de uma considerável multidão (11, 24), que passa a ser chamada igreja, uma palavra grega equivalente a ‘sinagoga’
ou ‘assembleia’: As igrejas cresciam em
número, de dia em dia (16, 5).
Não
dá para negar o impulso do momento e a inquietação que o movimento, desde
Pentecostes, provoca no seio do judaísmo ortodoxo. Aparece algo diferente da
religião dos burocratas do templo, dos fariseus e saduceus, dos letrados e dos
sacerdotes. Um Sopro Santo passa por camponeses, pescadores e publicanos,
mulheres e crianças, ignorantes e pecadores. E isso inquieta os judeus bem
pensantes.
No
dia de Pentecostes, um Sopro Santo desce em ‘línguas de fogo’, confere força
aos apóstolos no sentido de afirmar em praça pública a novidade de Jesus, um
novo jeito de viver, fraternidade, acolhimento, atenção aos pequenos e
rejeitados deste mundo, entusiasmo entre as camadas mais pobres, nas cidades e
nos campos por onde o movimento se espalha. Pentecostes é irrupção avassaladora
de Deus na vida. Não se trata de doutrina, código moral ou celebração ritual.
Trata-se de um impacto contagiante que conduz a uma nova experiência de vida.
Hoje
dizemos: a espiritualidade cristã é fundamentalmente pentecostal. Por meio
dela, o movimento de Jesus aparece como experiência de vida, não como doutrina,
rito ou pura liturgia. Os exageros de Lucas na apresentação do número de
aderentes ao movimento de Jesus, que lemos nos Atos dos Apóstolos, são
sintomáticos da exaltação com que os próprios militantes devem ter contado sua experiência.
A mesma exaltação que percebemos em certos episódios dos Atos, como a narrativa
do naufrágio de Paulo e dos diversos discursos que o acompanham (At 27, 13-44),
a conversão às portas de Damasco (At 9, 1-22) e o discurso de Paulo no Areópago
ateniense (At 17, 19-34). Tudo isso vem a significar: o judaísmo formal,
hipócrita, sacerdotal e legalista não tem mais nada a oferecer. Nós somos o Novo Israel! (Pedro nos Atos
2, 14-36).
O
judaísmo oficial rejeita o pentecostalismo, não consegue compreender o momento.
Isso leva a um infeliz confronto entre as comunidades de seguidores de Jesus e
o judaísmo oficial: as primeiras não se sentem mais ao abrigo nas instituições
do rabinismo judaico tradicional e criam um novo rabinismo, expondo-se à
eventualidade de uma intervenção por parte de lideranças organizadas dispostas
a ‘pôr ordem na casa’.
Pentecostes
é uma experiência de ordem mística. Mas não num sentido neo-platônico. A
admiração que sentem os que se deixam atrair pelo movimento não se deve
atribuir unicamente a pretensos fenômenos extraordinários (com os relatados em Atos,
capítulo 2), mas também ao fato que as pessoas percebem, nos seguidores de
Jesus, um novo jeito de se viver, um clima de fraternidade e acolhimento, uma atenção
aos pequenos e rejeitados deste mundo. Lucas focaliza isso em diversos
momentos. Isso deixa profunda impressão entre as camadas mais pobres da
sociedade judaica, nas cidades e nos campos. Esse é o grande sinal do Sopro de
Deus. Elenco aqui, de passagem, alguns desses sinais, colhidos em textos do
Novo Testamento e da Tradição do segundo século: a atenção especial dada aos
que sofrem e são rejeitados (1 Pedro 4, 12-13 e mais tarde a Carta a Diogneto),
sobretudo os peregrinos e forasteiros (1 Pedro 2, 11), que são numerosos na
periferia do sistema romano, a regra Entre
vocês tem que ser diferente, quem quiser ser o maior se faça o menor (Lc
22, 26), a opção pelos pobres (Tiago, 2, 1-9), um ‘lar’ para quem não tem casa
(as Cartas de Pedro), a elaboração de uma teologia de eleição dos excluídos nos
planos de Deus (1 Pedro 2, 4-10; Tiago, 2, 5), a recusa de uma aliança com o
pensamento filosófico da época (Justino, Ireneu), o martírio (Policarpo, Inácio
de Antioquia), o amor e perdão ao inimigo, a não-violência ativa, a fé na
ressurreição da carne como resposta à petulância das autoridades judaicas (At
2, 22-36), um novo relacionamento entre homem e mulher, a introdução do conceito
de ‘adultério masculino’, desconhecido na cultura do império romano e mesmo no
judaísmo (O Pastor de Hermas), a recusa do serviço militar como sendo contrário
à ideia da única soberania de Deus (Tertuliano); a recusa do aborto e do
abandono de crianças recém-nascidas, em nome do imperativo do respeito pela
vida pessoal (Carta a Diogneto), a não-participação em jogos de circo e teatros
(onde a dignidade do corpo humano é tripudiada), a comunidade eclesial de base
(Paulo); etc.
Podemos
alargar ainda mais o horizonte e enxergar paralelos entre essa experiência
pentecostal judaica e o que acontece em diversas religiões pelo mundo afora. Por
isso se pode dizer que o pentecostalismo, de certo modo, excede o cristianismo
e se relaciona com momentos de inspiração, reavivamento (revival), reanimação,
experiências extraordinárias de entusiasmo e de fé que encontramos em muitas
religiões. Voltarei a esse ponto. De modo que não é tanto o caso concreto do
Pentecostes judaico que retém nossa atenção, mas sim sua redundância histórica.
Conhecemos
o resto da história. Depois de Pentecostes, o movimento de Jesus se espalha
rapidamente pelo mundo. A perda do templo e da cidade de Jerusalém, por sucessivos
golpes políticos, entre 70 dC e 135 dC, é um desastre para os judeus ortodoxos,
mas não para o jovem movimento. Com a eliminação de Jerusalém enquanto centro
religioso, as famílias sacerdotais hereditárias e a alta classe judaica se
arruínam definitivamente. Mas ao mesmo tempo surge, entre 70 e 200 dC, um
judaísmo rabínico que existe até hoje e que oferece sustento ao jovem movimento.
O rabino toma o lugar do sacerdote. Em vez de ser o homem do templo, ele é o
homem ‘do livro’, o ‘mestre’ (rav), conhecedor das letras da Torá e mais tarde
do Talmud, o ‘sábio’ (chacham) da comunidade. Não é ‘líder’, nem detém poder
além do poder da palavra que interpreta. Pois, na sinagoga, a Palavra de Deus
reina soberana. O rabino não recebe pagamento por seu ensinamento, pois a
palavra de Deus é gratuita. Ele tem de arranjar uma profissão para se
sustentar. Enfim, o rabino é o homem do raciocínio, da palavra, não do rito.
Não corresponde ao clérigo no cristianismo. É um leigo, sem maiores poderes do
que os demais participantes da sinagoga.
É
nesse novo modelo que o cristianismo nascente (do século II) se inspira, como
verificamos em figuras como Hermas, Marcião, Valentino e Justino. Um
cristianismo de mestres e discípulos, não de sacerdotes e fieis.
Com
a destruição de Jerusalém como centro religioso, o movimento de Jesus mergulha,
por assim dizer, no anonimato. Doravante aparecem textos menores, provenientes
do mundo anônimo das comunidades como cartas, evangelhos apócrifos, atos dos
apóstolos (igualmente apócrifos), apocalipses, visões, enfim, uma vasta
literatura até hoje pouco conhecida. Essa literatura revela um movimento ligado
à vida nas famílias, onde se aprende a falar menos e escutar mais, lutar para
ganhar o pão de cada dia, preparar os alimentos, suportar o incômodo da
convivência em ter familiares, respeitar a liberdade do outro (da outra),
educar os filhos, socorrer o irmão necessitado. O movimento fica mais
pragmático e procura harmonizar as exigências radicais de Jesus com a
cotidianidade da vida. Repetitivos e lentos, os textos que nos chegam desse
período não contêm grandes novidades, mas traduzem a seu modo a novidade
cristã.
É
desse modo que o pentecostalismo cristão entra na história.
3.
Um Sopro de Deus em Corinto.
Há
uma terceira narrativa que conta a irrupção do Sopro de Deus nos inícios do
movimento cristão. Trata-se, inclusive, da primeira narrativa em termos
cronológicos, pois é anterior aos evangelhos de Marcos (dos anos 70), de Lucas
(dos anos 80-90) e dos Atos dos Apóstolos (dos anos 120), que acabamos de ler. Escrita
apenas 20 anos após a morte de Jesus, no início dos anos 50, essa narrativa, escrita
por Paulo Apóstolo, nos introduz numa reunião típica dos inícios do movimento
de Jesus (1Cor 14), na cidade grega de Corinto. Ali nos surpreende o ambiente
barulhento e agitado. Há pessoas que ‘falam em línguas’, emitem sons sem
sentido aparente, que - mesmo assim - são acolhidos com exaltação. Os
participantes parecem convencidos que esses sons expressam uma língua
misteriosa de contato direto com Deus.
Alguns entram em transe, outros gritam e gesticulam.
Em
diversos tópicos de suas cartas, Paulo utiliza o termo ‘grito’ e, diante da
importância por ele atribuída a esse vocábulo, vale a pena se perguntar o que pode
significar um grito que emerge de um ambiente extático. O sacerdote psicólogo
alemão Eugen Drewerman explica que gritos extáticos não são falsificações, mas formas naturais de transmissão de grandes
temas e de verdades permanentes presentes nas camadas profundas da psique
humana (Drewermann, E., Psychanalyse et Exégèse, 2, Seuil,
Paris, 2001, p. 18).
Paulo
faz questão de afirmar, sem constrangimento, que ele também ‘fala em línguas’,
e mesmo melhor que qualquer um: Eu falo
em línguas mais que qualquer um de vocês (1Cor 14, 18). Mas há um limite.
Ele repete, o tempo todo, que o êxtase - por bom e louvável que seja - tem de
obedecer ao regulamento superior da profecia
(vv. 22-26) e que, sem profecia, não há encontro cristão. O que isso significa?
Em meio à exaltação não se pode esquecer que os participantes têm o direito de entender
o que se quer dizer. Não basta gritar e gesticular. Falar ‘em línguas’ é bom,
argumenta Paulo, mas que tudo seja acompanhado de palavras que encorajem as pessoas (v. 31), fortaleçam o grupo (v. 12), ajudem os outros. Na assembleia, prefiro
dizer cinco palavras inteligíveis para instruir os outros, que dez mil palavras
em línguas (v. 19). Os momentos privilegiados do êxtase postulam uma
adequada explicação. Se Deus se revela numa fala
em línguas de uma forma que nem o próprio falante, nem os demais
participantes entendam ao certo o significado, é preciso que alguém do grupo diga
alguma palavra ‘inteligível’. Se todos começam a falar sem que haja quem
explique (no texto original: ‘se comporte
em profeta’), os de fora vão pensar que os cristãos são malucos (v. 23). A
‘profecia’ faz com que o êxtase se torne capaz de convencer os de fora: Imaginem que todos profetizam (explicam
‘línguas’). Entra então uma pessoa de
fora. Ela é logo questionada por todos e o que seu coração oculta se torna
patente. Então ela cai com a face na terra e adora Deus, gritando: ‘Sim, é
verdade, Deus está no meio de vocês’ (1Cor 14, 24-25). Tudo que acontece durante
o encontro, seja canto, ensino, revelação, fala ou gesto (v. 26), merece ser
devidamente explicado: todos podem se
expressar, mas um por um, para
instruir a todos e encorajar a todos (v. 31). Pois Deus não é um Deus da desordem, mas da paz (v. 33). A insistência
de Paulo no sentido que tudo se faça em
ordem (v. 40) e que a êxtase seja acompanhada de uma palavra explicativa
(exortativa, profética) assegura aos os grupos paulinos - a médio e longo prazo
- a sobrevivência em comparação a outros grupos, liderados por apóstolos talvez
mais entusiasmados, mais eloquentes, mais versados na oratória ou mais
extasiados, mas que não têm o devido cuidado em controlar os possíveis excessos
extáticos.
O
clima extático, no capítulo 14 da Carta aos Coríntios, revela algo que não se
encontra nos evangelhos: o modo ‘entusiasta’ em que a mensagem de Jesus é
recebida no mundo mais amplo da diáspora judaica, fora da Palestina. O fariseu
‘encantado’ de Tarso (Atos 9, 1-9), arrasta consigo os ouvintes/leitores para o
universo extático que ele mesmo vive. Daí gritos como ‘Jesus ressuscitou!’, Ele
subiu ao céu!’, ‘Ele está sentado ao lado de Deus Pai!’, ‘nós vamos ressuscitar
com ele!’. Um encantamento que faz com que esses grupos extáticos tomem distância
diante dos preceitos da Lei, lutem pela abertura do movimento de Jesus a não-judeus
e nunca percam a esperança no Reino de Deus que já cresce - qual planta
selecionada, adubada, capinada e cuidadosamente cultivada - no seio de pequenos
grupos espalhados pelo mundo.
4.
O Espírito Santo.
O
que dizer da expressão ‘Espírito Santo’, que hoje substitui o ‘Sopro Santo’ dos
textos semitas? Sabemos que traduções sempre correm o perigo de se tornar ‘traições’.
Sabemos que o leitor de um texto traduzido sempre tem de prestar atenção a possíveis
armadilhas nele contidas, capazes de deturpar o sentido de uma expressão, ou
pelo menos dificultar sua compreensão. Quando
o ruah hebraico passa ao pneuma grego e quando esse, por sua vez,
passa para o spiritus latim e nosso espírito português, anda-se a passos tão
largos que a deturpação do sentido original é quase inevitável. Com a passagem
de ‘ruah’ para ‘pneuma’, operada pelos ‘Setenta’ de Alexandria no século III
aC, abandona-se o universo semita e
penetra-se num universo de significados gregos. O termo perde em vigor,
abandona os desertos do Levante e as finezas das expressões semitas e ganha ares
mediterrâneos, helenísticos, mais suaves. E quando esse ‘pneuma’, por sua vez, passa
para ‘spiritus’, na tradução latina feita por São Jerônimo no século IV dC (a ‘Vulgata’),
modos romanos de se praticar a religião invadem a leitura das Escrituras e trazem
um forte ingrediente de espiritualismo neo-platônico.
Pois
o ruah dos primeiros textos bíblicos é forte, impetuoso e repentino. Deus age no
mundo ‘soprando’. Em Gênesis 2, 7, o sopro de Deus insufla uma vida tão
poderosa nas inertes narinas do Adão, que este se espalha rapidamente pela
terra inteira, como relatam os primeiros capítulos do livro Gênesis com
manifesta satisfação. Uma vida tão potente que os primeiros patriarcas alcançam
idades incríveis. Matusalém chega aos 969 anos (Gn 5, 27) em meio de filhos,
netos e bisnetos a não saber mais o número. O Adão é ao mesmo tempo ‘inspirado’
e frágil. É respirando que ele demonstra estar vivo, mas, de outro lado, ele não
é mais que um sopro que passa e não volta
mais (Sl 78, 39).
Mas
não é só no Adão que o sopro de Deus se mostra poderoso. No princípio dos
princípios, antes mesmo da luz, o sopro de Deus já movimenta o universo:
Terra vazia solidão
Escuridão sobre os abismos
Sopro de Deus
Movimentos sobre as águas (Gn
1, 2).
Movimentos
também sobre os imensos desertos do Levante. Enfim, o ruah hebraico tem um amplo leque de significados, desde vento, ar
respirado, fôlego de vida, até elementos mais psicológicos como ímpeto,
dinamismo, ardor e vontade. Depois do dilúvio, recordando seu amigo Noé, Deus sopra sobre a terra e as águas um vento
de paz (Gn 8, 1). O sopro de Deus apazigua as águas do dilúvio, abre
passagem para os hebreus no Mar Vermelho, traz alimentos ao deserto, restaura
ossos ressecados em povo vivo (Ez 37, 1-14). Um sopro de Ihwh deposita Ezequiel no meio de um vale repleto de ossos
secos, e lhe manda dizer aos ossos: Vejam,
eu lhes envio um Sopro. Vivam. Eu lhes dou nervos, carne e pele, eu lhes dou
meu sopro. Vivam! (Ez 37, 6). E é esse mesmo Sopro Santo que nos traz
Jesus: Um Sopro Santo virá sobre ti e uma
força do Muito Alto te cobrirá com sua sombra (Lc 1, 35), diz o Anjo a
Maria.
O
Sopro de Deus anima os primeiros cristãos. Em meio a dificuldades, o Sopro se
revela uma ‘força drástica’ (como escreve Paulo), ou seja, uma força que intervém
nas horas do perigo. Ora, o perigo é a aliança dos líderes da igreja com os
poderes deste mundo. Perigo grande aparece no século IV, quando o próprio
Imperador Constantino convida os líderes cristãos a se reunir em Niceia, sua
residência de verão, situada na Ásia Menor. Aí já dá para perceber o perigo. Os
bispos começam a ter medo do Espírito Santo, como revela o Credo de Niceia, que
evita pôr o Espírito em relevo e só lhe concede um lugar no fim do Credo. Nas
entrelinhas desse Credo se esconde o receio de uma igreja por demais profética.
Aliás, já no início do século III, Tertuliano tinha escrito com todas as letras
que a igreja emergente expulsou os profetas,
afugentou o Espírito (prophetiam expullit, Paracletum fugavit). A igreja
católica herdou esse temor mal confessado do Espírito Santo e evitou se referir
a ele ao longo de muitos séculos.
Mas,
como sempre acontecem novidades na história, aparece uma defesa do Espírito
Santo, muitos séculos após Niceia, onde menos se espera: na filosofia moderna,
entre descrentes e críticos da religião. Diante da vitória da Revolução Francesa
em Paris, o filósofo alemão Hegel elabora, na sua ‘Fenomenologia do Espírito’
(1807), uma teoria acerca da importância fundamental do que ele chama de ‘Espírito
verdadeiro’, na construção da história humana. Outros filósofos da época, Kant
e Diderot, o acompanham. Tomando emprestada de Diderot a imagem do tecelão,
Hegel escreve que o Espírito ‘tece sua rede’ em silêncio, com paciência e
perseverança. Diderot ainda usa outra imagem, a de um tecido totalmente
impregnado por algum líquido. Quando um corpo social se encontra totalmente
impregnado de ideias novas, a revolução factual é fácil. Ela pode até acontecer
sem derramamento de sangue. Escrevo o termo ‘Espírito’ com maiúscula, pois se
trata aqui deveras do Espírito Santo. O velho sistema cai por si mesmo, como um
vestido que não serve mais. No silêncio de inúmeras ações inovadoras,
realizadas no dia-a-dia da vida, o Espírito vai abrindo espaço para que - no
momento apropriado - sua dinâmica se manifeste e provoque uma efetiva mudança
na sociedade como um todo. Segundo Hegel, a revolução factual é uma decorrência
natural da reforma espiritual. Kant diz mais ou menos o mesmo quando usa a
imagem de um motor que unifica e propulsiona os mais diversos elementos que se
encontram dispersos na realidade da vida. A pessoa ‘espiritualmente unificada’ não
se deixa distrair, ela só se interessa pelo ‘Espírito’, ou seja, pelo que
realmente importa.
Estamos
aqui, no final do século XVIII, época da Revolução Francesa, diante de um inesperado
reencontro entre a intelectualidade ocidental e o espírito profundo da Bíblia,
que desde as narrativas patriarcais usa a imagem do espírito (ruah, sopro) para
significar ações silenciosas, cotidianas, unificadoras e impulsionadoras,
capazes de mudar o mundo. O âmago da revolução, portanto, não reside no
movimento violento e estrondoso das armas (embora essas sejam por vezes
indispensáveis para confirmar o processo), mas na ação silenciosa e tenaz do Espírito
no íntimo das pessoas. O reencontro
entre Bíblia e pensamento moderno, operado por Hegel e consortes, põe fim à
leitura platônica da obra do espírito, que durante longos séculos predominou na
literatura cristã. No pensamento platônico, como sabemos, a ‘espiritualidade’
não tem nada a ver com a vida dos corpos com seus problemas ‘materiais’. Mas,
inesperadamente, filósofos modernos da envergadura de Hegel, Kant e Diderot
fornecem aos cristãos de hoje uma senha de acesso aos documentos de sua própria
tradição. O mesmo se diga de um filósofo do século XX, o marxista Ernst Bloch,
que, em seu ‘Princípio Esperança’ (‘Das
Prinzip Hoffnung‘, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1949) escreve que Jesus ‘incorpora’
o Espírito Santo, vive o ‘sonho diurno’ de um ‘mundo diferente’, e assim
acumula energias em prol da mudança, em contraste com o conformismo inerente às
religiões hierarquizadas.
5.
A tradição.
Essas
pinceladas apelam para a seguinte reflexão: ao longo desses dois mil anos de
história cristã, o Pentecostes foi vivido nos mais variados contextos e teve
nomes e protagonistas diferentes. Isso nos traz a seguinte reflexão: ao querer falar
do pentecostalismo, não se pula direto do
segundo capítulo dos Atos dos Apóstolos aos nossos dias. Há de se passar
pela ‘tradição’. Uma tradição nos deu um Paulo de Tarso, um Bento de Núrsia, um
Joaquim di Fiori, um Francisco de Assis, um Lutero, um Calvino, um Zwingli, um
Inácio de Loyola, um Domingos de Guzmán, um Armínio, um John Wesley, uma Hildegarde
de Bingen, um Mestre Eckhart, uma Teresa de Ávila, um João da Cruz, um Antônio
Conselheiro. Uma tradição tão diversificada que o estudioso pentecostal Samuel
Pereira Valério, numa entrevista que captei na Internet, declara: existem profundas diferenças entre os grupos
que se dizem pentecostais. No que se costuma chamar ‘pentecostalismo’ (em
singular) atuam na realidade complexos e diferenciados cruzamentos entre
arminianos, calvinistas, batistas, presbiterianos, metodistas, quakers. Há como
detectar mesmo mútuas influências entre grupos pentecostais e participantes de
movimentos carismáticos católicos.
Ao
escrever estas linhas, sinto-me de repente como navegando numa imensidão oceânica.
Enxergo no horizonte longínquo a imagem
da ‘Iluminação’ de Buda, recordo a Visita do Anjo Gabriel a Maomé, relembro o
Livro dos Aforismos de Confúcio, entrevejo a Satyagraha de Gandhi. Imagens e mais
imagens da atuação de ‘Sopros de Deus’ sobre a vastidão do mundo. Aí me volta a
frase de Jesus: O vento sopra onde quer,
você entende sua voz sem saber donde vem nem para onde vai. Assim vai todo
homem nascido do Sopro (Jo 3, 8). Um
Sopro de Deus em Nazaré, Jerusalém e Corinto, mas também em Nepal, em Meca, na
China, no Brasil.
Não
posso deixar de dizer aqui, dentro do tema ‘tradição’, umas palavras sobre o catolicismo,
religião em que nasci e me criei. Durante longos séculos, o catolicismo foi a
instituição mais poderosa das sociedades ocidentais, com seu papado no topo,
suas dioceses espalhadas pelo mundo, suas paróquias a marcar as horas, os dias,
as semanas, os anos e os momentos das vidas das pessoas, ou seja, a acompanhá-las
do nascimento à morte, por meio de ritos, pregações, sacramentos, regras de
conduta, principalmente pela criação de um impressionante imaginário. Igrejas no
centro das aldeias, e no meio das cidades a catedral. Mitras, batinas, estolas.
A época gloriosa do catolicismo se situa na Idade Média, quando - ao lado de
retumbantes sucessos - se cometeram erros
gigantescos. A hierárquica eclesiástica da época incorreu no erro fatal de construir
uma cristandade sem praticamente nenhuma
referência à irrupção do Espírito de Deus no mundo. Um impressionante imaginário
de poder e glória ocultou a ação do Espírito.
Esse
desvio gigantesco deixa hoje não
poucos católicos perplexos. Cresce o número dos que se dão conta que resgatar o
sentido original do cristianismo é coisa difícil para os católicos. Difícil abandonar
a postura psicológica, a mentalidade de quem foi educado dentro da ideia de uma
instituição eclesiástica eterna e imutável, na ilusão de uma sociedade ‘cristã’
transmitida por ‘osmose’, pela simples transmissão da cultura na sucessão das
gerações.
Esse
catolicismo ‘sem Espírito’ facilitou o surgimento da atual religião, mundial e
exclusivista, do mercado. Se, durante séculos, se disse: ‘extra ecclesiam nulla
salus’ (fora da igreja não há salvação), agora se diz ‘there is no alternative’
à religião do mercado. O mercado regula tudo, como um Deus. Distribui,
equilibra, põe ordem nas coisas. Na realidade cria ricos extremamente ricos e
pobres extremamente pobres. Por causa do background católico absolutista, foi
relativamente fácil, para os pregadores da religião do mercado, convencer as
pessoas do poder absoluto do mercado. Na vida cotidiana, as regras não sofreram
muita alteração e muitos nem sentiram a transição.
6.
A ‘pentecostalidade’.
Como
tencionei mostrar neste texto, a atual apropriação política do pentecostalismo
não esgota nem de longe as potencialidades desse modo de se confessar o
cristianismo. Existe, no pentecostalismo, muita riqueza que escapa a essa
apropriação.
Eis
o ponto que chamou a atenção de alguns dos bispos católicos que participaram do
Concílio Vaticano II, realizado em Roma entre 1962 e 1965. Ali despontou,
embora de modo velado, sem nome nem qualificação, o tema do pentecostalismo. Aliás,
foi no contexto desse despertar que nasceu o neologismo ‘pentecostalidade’.
Isso
se deu por ocasião de uma discussão, na Aula Conciliar, sobre o ‘carisma’ (veja
o verbete ‘Carisma’ no ‘Dicionário do Concílio Vaticano II’, editado por Paulinas
e Paulus, São Paulo, 2015 [cuja coordenação coube, em parte, a Wagner Sanchez
Lopes], pp. 78-80). Apresentaram-se duas posturas frente ao ‘carisma, dom do
Espírito Santo’. Uma, defendida pelo Cardeal italiano Rufini, representou a doutrina
clássica: o carisma é um dom ‘extraordinário’, a ser exercido em submissão à autoridade eclesiástica. Outra,
representada pelo Cardeal belga Suenens, sustentou que o carisma é um dom
‘ordinário’ do Espírito Santo, ou seja, livre e independente de ordenamentos
eclesiásticos, embora sempre ‘ordenado ao bem da comunidade’. Enfim, uma
adaptação da frase de São Paulo que já comentei acima: A cada qual se concede a manifestação do Espírito, sempre ordenado ao
bem da comunidade (1Cor 12, 7). A Assembleia se posicionou do lado de Suenens
e o tema da liberdade no Espírito apareceu em dois documentos conciliares:
‘Lumen Gentium’ (4, 7 e 12) e ‘De Ecclesia’. Mas, pelo resto, houve pouco
interesse. O assunto passou quase despercebido, sem comentários. Como já
escrevi, o termo ‘pentecostalismo’ nem chegou a ser mencionado. Acontece que o
frade dominicano Yves Congar, um dos melhores teólogos participantes do
Concílio, demonstrou interesse pelo tema e chegou a lançar o termo pentecostalidade (Dicionário, p. 80).
Isso em diversos comentários seus, que aparecem no verbete acima mencionado do
Dicionário do Concílio Vaticano II e particularmente no livro ‘A Palavra e o
Espírito’, traduzido em português e editado pela Loyola, São Paulo, em 1989. A
tese de Congar: uma pentecostalidade
permeia toda a tradição cristã. O Espírito de Deus, que se revelou em
Jerusalém a discípulos amedrontados, continua se revelando. Ele toma sempre a
iniciativa, mas não segura o discípulo pela mão, não obriga, não dirige. Respeita
nossa liberdade. Ele ‘sopra’.
Para
terminar escrevo algumas orientações de leitura que me parecem condizer com uma
compreensão ‘pentecostal’ do cristianismo:
*
Aprender a ler a Bíblia segundo o modo em que os antigos judeus a leram, ou
seja, seguir o modo ‘midrash’ dos antigos rabinos: contar as histórias com
forte ingrediente imaginativo.
*
Abandonar uma leitura exclusivamente linear dos textos a favor de uma leitura mais
condizente com as circunstâncias concretas da vida vivida. Isso implica em ver nos
textos disponíveis peças de um ‘quebra-cabeça’ a ser montado pelo leitor atual.
Operação delicada, decerto, que consiste, por exemplo, em retirar o tema pascal do foco e focar o tema pentecostal, ou seja,
relacionar a narrativa sobre a ressurreição de Jesus ao evento pentecostal e
não ao evento pascal. Pois a ‘semana santa’ é a semana da derrota (aparente) do
movimento. Ela termina com o abandono dos discípulos, que deixam Jesus só. Pentecostes,
pelo contrário, realça a recuperação da coragem por parte desses discípulos, após
meses (ou anos? quem sabe?) de insegurança, abatimento e vontade de abandonar o
projeto de Jesus.
*
Recolocar narrativas esparsas, como se fossem peças do um quebra-cabeça, numa
grande narrativa de recuperação do movimento de Jesus após o trauma da
crucifixão, como fiz na apresentação do item 2 deste texto, ao ler a narrativa
da paixão de Jesus e do abandono dos discípulos numa perspectiva pentecostal. Quer
me parecer que essa narrativa esteja mais próxima do realmente vivido. Mas,
claro, é assunto para discussão.
*
Termino com o versículo 46 do segundo capítulo dos Atos dos Apóstolos:
(após
Pentecostes) cada dia, com constância e
unanimidade, eles se dirigiam ao Templo, dividiam o pão em suas casas e se
alimentavam com alegria e de coração simples. O povo inteiro os olhava com
simpatia. Não importa que o templo seja budista ou umbandista, católico ou
pentecostal. O que importa é que se divida o pão com os que não o têm.
PS.
Recomendo a leitura do artigo ‘Hermenêutica Bíblica: refazendo caminhos’, de
José Ademar Kaefer (jademarkaefer@gmail.com),
publicado na revista Estudos de Religião, vol. 28, n.1. São Bernardo do Campo:
UMESP, 2014, p.115-134. O artigo aborda alguns temas que só abordei por cima
neste meu texto, como, por exemplo, o das tradições orais na transmissão da
Bíblia, ou o método ‘midrash’ dos antigos rabinos, etc. Kaefer se diz devedor
de biblistas pioneiros na América Latina e cita Milton Schwantes, Severino
Croatto, Gilberto Gorgulho, José Comblin, Carlos Mesters, Jorge Pixley e Ana
Flora Anderson.
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