FREI ALOÍSIO FRAGOSO
(02/05/2021)
Penso que já cansei meus ouvintes, de
tantas vezes repetir uma das minhas enraizadas convicções: a maior riqueza de
cada pessoa é a sua própria história. Sua biografia, tesouro inesgotável, será
o seu mais rico legado. Ninguém conhece ninguém ouvindo-o expor idéias e
convicções. Mas quando alguém historia seu passado, simplesmente,
cristalinamente, sinceramente, nós o
conhecemos por inteiro, corpo e alma, realidade e mistério, sonho e
feijão.
Um exemplo clássico disso: um dos mais consagrados pensadores dos
tempos modernos é o filósofo alemão
Nietzsche. Embora discordando da sua visão do mundo e da vida, me
deleito saboreando sua capacidade de destrinchar as mais profundas verdades fossilizadas e escancarar as grandes
hipocrisias camufladas. No entanto, este gênio não conseguiu encontrar seu
equlíbrio existencial e acabou recorrendo ao suicídio. Quem lê suas idéias sem
conhecer sua biografia, na verdade não o conhece e, não o conhecendo, como
confiar em suas idéias?
Pulando do micro para o macro, do
indivíduo para a coletividade, fico a imaginar daqui a 100 anos. Quem serão os
protagonistas deste momento histórico que estamos atravessando, na visão dos
futuros historiadores? Tem sido de praxe que historiadores, (a exceção dos
gênios), porta-vozes das classes dominantes,
relatam os acontecimentos do ponto de vista dos opressores.
Selecionam os pioneiros do progresso e
os heróis da pátria entre os que se acham entronizados na cúpula do poder
político, do poder militar e do poder econômico. Sobram alguns lugares para
figuras relevantes da ciéncia, da literatura e das artes.
E o povo, o povo no sentido mais popular
da palavra? Se não lhe cabe nenhum papel de protagonista, como definir seus
componentes? Massa sobrante? Refugos do
Mercado? Párias da sociedade? Úteis
enquanto meros serviçais e peso morto no sistema produtivo? Condenados ao
anonimato e destinados apenas a sobreviver?
Vê só uma coisa! Milhares de operários
foram necessários para construir Brasília, capital do país. Sem eles Brasília
simplesmente não existiria. Contudo, quem a visita é convidado a conhecer um
imponente museu dedicado a Juscelino Kubischek, seu idealizador. E não vai
encontrar nenhum registro dos numerosos Zé da Silva e Maria da Conceição, que
jazem nos alicerces da grande cidade.
Neste ponto bato palmas para a mídia
alternativa, particularmente das redes sociais. Tivemos oportunidade de escutar, faz alguns dias, dois moradores de
rua de S.Paulo. Anônimos, mal-amanhados, excluídos. Discorriam filosoficamente
sobre a relação entre pandemia, política e sociedade. Confesso que não foi
menor minha admiração, meu prazer, meu aprendizado, do que se estivesse
escutando Jessé de Souza ou Noam Chomsky.
Chamemos de drama a pandemia do
coronavirus. Em torno deste drama movem-se os mais diversos atores, com papéis
diferenciados. Quem são os que povoam diariamente as páginas da grande mídia?
Sem dúvida, são os que ocupam as assembléias políticas, com seus discursos,
intrigas e resoluções. Quem são os que trabalham nos bastidores, garantindo a
segurança e o êxito final desse drama?
Decerto são os que se recolhem em seus laboratórios de pesquisa e os que
se estafam nos espaços dos hospitais, das UTIs (cientistas e profissionais de
saúde.) E onde se encontra o povo? - Na
platéia. E quais os comentários da midia
sobre eles? - Que estão ou não se aglomerando, que estão ou não usando máscara,
que estão ou não frequentando as praias.
No entretanto, constituimos uma
humanidade. Como poderemos entender a totalidade se descartarmos o papel da
maioria? E como podemos nos redimir, se negamos ao povo o sacratíssimo direito
de sonhar?
A despeito de todos estes questionamentos,
gostaríamos de introduzir nossa próxima reflexão com este pensamento de João
Guimarães Rosa: "poder nenhum há que se aguente quando o povo se arrepia,
sacudindo o lombo".
Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da
Tenda da Fé e escritor
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