FREI ALOÍSIO FRAGOSO
(28/04/2021)
Lembro de ter lido, certa vez, a respeito
de um dos maiores compositores musicais da História, o italiano Giuseppe Verdi,
o seguinte:
Em poucos anos, Verdi perdeu as pessoas
que mais amava: sua jovem
esposa Margherita, a seguir, sua filhinha Virgínia e, pouco tempo depois, seu segundo filho.
Precisamente nesta época ele estava contratado para compor uma ópera cômica.
Teve de cumprir o acordo. O resultado foi um fiasco. Como encenar uma comédia
se ele estava vivendo uma tragédia? A platéia reagiu com vaias e apupos. Verdi
jurou que nunca mais voltaria a compor. No entanto, algum tempo depois,
passados os estertores da dor, ele escreveu as suas quatro óperas mais belas,
mais famosas e imortais: "Nabuco", "Rigoleta",
"Aída" e "Traviata".
Este episódio me impressiona. E me faz
lembrar uma passagem do Evangelho em que Jesus afirma: "se a semente,
plantada na terra, não apodrece e morre, fica estéril, mas se ela morre, produz
frutos em abundância" Jo.12,24-26. E outra onde Ele anima seus apóstolos
lembrando a figura da mulher na hora do
parto. "Ela sofre por causa das dores e, ao mesmo tempo, se alegra pela
nova vida" Cf.Jo.16,21.
Estas são imagens que produzem emoções sempre de novo. Elas nos fazem
enxergar um dos grandes mistérios da existência humana, o da dor que gera
beleza e vida nova. Estamos revivendo, nestes tempos sombrios da coronavirus,
uma certa culminância deste mistério.
Ter de viver em estado permanente de
emergência, ter de limitar aos meios técnicos as chances de interagir com os
amigos, é ter que reinventar-se continuamente. Quantos estão enfrentando a
sensação de que tudo é fluido, tudo é destituído de qualquer garantia! Então
ocorrem perguntas cruciais: que sentido tem a vida? Que sentido tem lutar pelo
simples existir?
A despeito disso, não se ouvem gritos de
desespero, não se vêem agressões aos que festejam a vitória sobre o virus,
respeitam-se os que buscam resposta na fé religiosa, assiste-se, nos hospitais,
a uma procissão de pessoas reverentes diante da dor
e da morte. Como entender
tal fenômeno? - Crendo numa coisa simplesmente: as grandes tragédias nos
aproximam da essência da vida, do que existe de mais profundo em nós, e não
estávamos acostumados a dar-lhe atenção. É aí que entra o papel da arte.
Desde o início desta pandemia, temos sido
agraciados por uma riqueza variadíssima de manifestações artísticas, poemas,
canções, pinturas, para além de fronteiras geográficas e culturais. Elas chegam
a nós através das redes sociais, em uma profusão tamanha que é preciso reduzir
o acesso a elas, para poder apreciá-las devidamente. Não se trata de arremedos,
plágios, simulacros, trata-se da arte mais genuína, criativa e original.
Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da
Tenda da Fé e escritor
Nosso primeiro impulso é repercuti-las ao
máximo, partilhar com o mundo inteiro o nosso deslumbramento. Por elas
descobrimos a incrível verdade de que "é dando que se recebe", pois quanto mais dividimos nossas emoções,
tanto mais elas crescem e, em reparti-las, nada perdemos, só ganhamos.
Além disso, esta arte rompe as barreiras
de toda discriminação. Sentimos genialidade e beleza do mais alto nível, seja
numa adaptação das sinfonias de Beethoven, seja nas letras e vozes de
repentistas nordestinos. Quantas dezenas
de vezes e em quantas variadas execuções, clássicas ou pop, vocais ou
instrumentais (violino, violão, violoncelo, cavaquinho, sanfona, realejo),
quantas dezenas de vezes temos escutado,
nas redes, a imortal melodia de Schubert: Ave Maria! Ela foi selecionada por
uma entidade japoneza como uma das canções mais portadoras de paz, nesta
pandemia. De inspiração católica, tornou-se patrimônio da humanidade. Somente a
arte consegue derrubar tantos muros de preconceitos.
O mais importante, no
entanto, é o seu poder de irradiação, capaz de redescobrir as forças de reserva
ocultas em nossa natureza, de nos trazer alento e alívio, de refazer nossa
confiança na capacidade de superação do ser humano. O prazer estético que nos proporciona,
gerador de puras emoções, cumpre o papel de unir as pessoas e os povos.
Fica-nos de tudo isso uma saudável lição:
em meio a todas estas turbulências, não deixemos de ocupar os espaços onde a
boa arte prolifera e cumpre o seu importantíssimo papel de nutrir as energias
que modelam o mundo, (sem esquecer que ela é também uma arma eficaz no
confronto com a linguagem chula, indigesta e mal cheirosa do Chefe da nação,
reproduzida pelo seu inculto gado).
Para os que cremos e contemplamos a
presença divina na História, a arte é porta-voz de Deus, e nos conclama a renovar a confiança pascal no
poder da vida sobre a morte. Amém.
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