Maria Clara Lucchetti Bingemer
Falamos de Maria, mãe de Jesus, de vacina, bem comum e esperança de
todos. E o mês de maio já está acabando. O Dia das Mães ficou para trás e
não falamos sobre essa experiência humana fundamental que é a
maternidade. Transitando entre o mais horizontal e contingentemente
biológico e o transcendente que lhe dá estatura de quase milagre, antes que
termine maio, não posso deixar de escrever sobre maternidade.
Sempre de fundamental importância, chamando a atenção das religiões, das
igrejas e do pensar acadêmico, a maternidade hoje encontra uma nova e potente
analogia: a terra. Nossa Mãe Terra, como diz o Papa Francisco em sua
encíclica Laudato Si, de 2015. Pacha Mama, Nana e outros
muitos nomes pelos quais é venerada a terra em diversas religiões: andinas, afroameríndias
e outras.
Em um momento como o que vivemos, quando a espécie humana sente
aterrorizada, pesando sobre sua cabeça, a ameaça da extinção, é importante
voltar-se para a fonte da vida, que se encontra no feminino e muito concreta e
tangivelmente no corpo feminino. Criado capaz da maternidade, de gerar outro
corpo, carregá-lo, trazê-lo ao mundo, alimentá-lo com o leite que sai de
seu corpo e criá-lo para que a vida se multiplique, a fim de que o povo ganhe
mais filhos e a fecundidade, e não a morte, tenha a última palavra.
A experiência de que somos Terra constituiu a matriz da autocompreensão
da humanidade desde que o mundo é mundo e o homo sapiens tomou
consciência disso. Essa experiência matricial produziu uma espiritualidade e
uma política configuradas nas instituições matriarcais.
As mulheres são os eixos organizacionais da sociedade e da cultura.
Surgiram sociedades sagradas centradas e organizadas em torno da
primordialidade da vida, que deveria ser cuidada, protegida e reverenciada.
A Mãe Terra carrega a memória, as origens, a nostalgia da integração e
da plenitude. Rememora um passado histórico e real, que urge ser resgatado e
ganhar validade hoje, aqui e agora.
A terra é o corpo vivo da criação. E este corpo funciona como o corpo
feminino. Tem ciclos, é receptivo e permeável à penetração do outro.
Fertilizado, dá frutos. Quando atacado e agredido, seca e se esteriliza. É um
corpo vivo, encontra sua analogia na abertura, receptividade e fecundidade que
acontece no corpo da mulher, que é terra semeada e fecundada.
Como dizem os versos inspirados de Chico Buarque e Milton
Nascimento, a terra deve ser afagada, seus desejos conhecidos pelo Amante que
por sua vez a deseja. Como as fêmeas animais e humanas, ela tem ciclos,
cios que são propícia estação de fecundar o chão.
A Mãe Terra é um corpo aberto e potencialmente fecundo, pronto para
gerar vida. E nesta crise ecológica vem sendo esterilizada por sucessivas
agressões e irresponsáveis ataques. Em estreita conexão com o feminino e
sua vulnerabilidade, que é potência de vida, a terra necessita ter seus
clamores desesperados ouvidos e atendidos, seus desejos conhecidos e
respondidos, seu corpo acariciado e protegido daqueles que veem nele apenas
fonte de lucro e a exploram com ganância desmedida.
A maternidade é, hoje, inseparável da luta ecológica, como mostra a
corrente de pensamento denominada Ecofeminismo. A Mãe Terra, criação de
Deus, vive hoje sugada em forças e recursos, agredida em potencialidades,
diminuída em possibilidades, esmagada em força vital. Não se respeitam
seus ciclos, sua gravidez lenta e progressiva, seu útero fecundo. Não se
acaricia seu corpo para que suas sementes se abram em flores de beleza
luxuriante ou em frutos turgidos de sumo.
E, no entanto, qual mãe amorosa cuja realização é que seus filhos
vivam plenamente continua a alimentá-los com o que lhe resta de vida, energia e
forças. Foi criada por Deus, que é Vida em Si mesmo, e assim sua única
ciência e seu único agir é dar vida. No entanto, não é inesgotável ou eterna
como Seu Criador. Depende de nós, humanos, não esgotar seus recursos para
que possa seguir sendo a mãe com seio túrgido que sacia a todos com os frutos
de seu ser.
Antes que termine maio, mas igualmente em todo tempo e em toda parte, é
digno e justo louvar e reverenciar a maternidade, esse potencial biológico e
natural, esse milagre transcendente e sagrado que é ser um corpo fecundado e
habitado por outro que dele se alimenta e dele depende para viver.
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio
e autora de “Experiência de Deus em corpo de mulher” (Editora Loyola), entre
outros livros.
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