Frei Betto
Cabeça,
tronco e membros: se tem isso, trata-se de um animal. Se pensa, fala e opta, um
animal racional. Se não joga papel no chão, respeita o pedestre enquanto
dirige, pede nota fiscal no comércio e exige direitos previstos em lei, um
cidadão.
Não é
nada fácil ser cidadão brasileiro. Pau que nasce torto... Nascemos como
nação-colônia, aprendendo que o estrangeiro é sempre melhor que o nacional.
Tivemos o mais longo período de escravidão da América Latina - 320 anos! Tanta
submissão está entranhada em nossas veias. Basta alguém se revestir dos
símbolos do poder - riqueza, autoridade e ostentação - para ser tratado como se
fosse um ser naturalmente superior aos semelhantes.
Exemplo
de subserviência brasileira foi o apoio de Bolsonaro à desastrada política de
Trump, que resultou no aumento de mortes por Covid-19 nos EUA e aqui. E os
promíscuos contatos dos procuradores da Lava Jato com a CIA, o FBI e outros
órgãos da inteligência policial estadunidense.
Cidadania
rima com soberania. É preciso gostar de si próprio para conquistá-la. Caso
contrário, as empregadas domésticas continuarão relegadas ao elevador de
serviço, os restaurantes finos só terão garçons brancos, nos voos
internacionais apenas passageiros da primeira classe respirarão ar puro (os
demais, ar reciclado) e todos acreditarão na publicidade dos planos de saúde,
que raramente correspondem à expectativa do usuário na hora do aperto.
Ocorre
que a globalização neoliberal detona todos os fundamentos de nossa soberania. O
FMI nos impõe o Estado mínimo, tipo fio dental, e o mercado máximo, tão livre
que paira acima das leis e da decência. As privatizações do patrimônio público
são o exemplo maior de dependência de nosso país ao capital estrangeiro. E o
que é mais grave: privatizam-se também nossos valores. Corroem nosso espírito
cidadão. Estamos ficando cada vez menos solidários, menos cooperativos, menos
participantes. Até a fé religiosa é privatizada, destituída de sua ressonância
social e política. Como se Deus fosse um balcão de atendimentos de
emergência.
Cidadania
rima também com democracia. Se nem se sabe o nome do político em que se votou
nas últimas eleições, e muito menos o que andou fazendo (ou desfazendo), como
participar das decisões nacionais? Assim, nossa democracia deixa de ser
representativa para ser meramente delegativa. Dá-se um bom emprego a um
político. Sem se dar conta de que são reflexos diretos da política o preço do
pão, a mensalidade da escola, a qualidade de vida, o tamanho do aluguel e a possibilidade
de férias.
Num país
de democracia virtual e cidadania formal não é de estranhar que o governo
entregue a gerência do Banco Central aos representantes dos bancos privados e o
torne independente das políticas traçadas pelo executivo federal.
Ser
cidadão é entrar em um nó de relações. E desencadear um processo socioeconômico
com efeitos na qualidade de vida da população. É simples: quando se pede nota
fiscal, evita-se a sonegação e aumenta-se a arrecadação pública que, em tese,
permite ao governo investir em equipamentos e serviços essenciais a uma vida
melhor: rodovias, hospitais, escolas, segurança etc. Quando se recusa a propina
ao guarda, moraliza-se o aparato policial. Quando se protesta em público contra
a violência policial, dilata-se o processo democrático.
Cidadania
supõe, portanto, consciência de responsabilidade cívica. É como a parábola do
menino que, na praia, devolvia ao mar um e outro dentre milhares de peixinhos
que a maré forte tinha jogado na areia. Alguém objetou: "De que adianta!
Você não poderá salvá-los todos". Ao que o menino respondeu: "Sim,
sei disso. Mas este - e mostrou o peixinho que dançava em sua mão - está
salvo". E jogou-o de volta à água.
Nada mais
anticidadania do que essa lógica de que não vale a pena chover no molhado. De
que tudo vai continuar como dantes no quartel de Abrantes. Vale. Experimente
recorrer à defesa do consumidor, escrever para os jornais e as autoridades, dar
o exemplo de consciência de cidadania. O que querem os políticos corruptos é
que passemos a eles cheque em branco para continuarem a tratar a coisa pública
como negócio privado. E fazemos isso todas as vezes que torcemos o nariz para a
política, com aquela cara de nojo.
Fica
difícil alcançar a cidadania quando só se acredita no código que se resume em
três leis: a da selva (dos animais, não dos índios, que são civilizados), a do
Gerson e a do cão. Nesse caso, não se queixe quando o pneu de seu carro furar
na estrada e ninguém parar para ajudar. Ou quando um hospital impedir a sua
entrada num momento de socorro imediato por não ter como fazer depósito em
dinheiro.
Cidadania
rima ainda com solidariedade. Cada um na sua e Deus por ninguém é o que propõe
a filosofia neoliberal. Sem consciência de que somos todos resultados da
loteria biológica. Nenhum de nós escolheu a família e a classe social em que
nasceu. Injusto é de cada 10 brasileiros seis nascerem entre a miséria e a
pobreza (e nascem por ano, no Brasil, cerca de 3 milhões de pessoas). Ter sido
sorteado não implica uma dívida social?
A
solidariedade se pratica com participação nos movimentos sociais - Igrejas,
movimentos populares, sindicatos, partidos, ONGs, administrações políticas
voltadas aos interesses da maioria. Uma andorinha só não faz verão. Como diz a
canção, sonho de um é sonho; de muitos, vira realidade.
Use e
abuse de seu direito de cidadania. Cobre dos vereadores e deputados que você
elegeu um acerto de contas. Debata com os candidatos. Exija compromissos
programáticos. E, sobretudo, atue comunitária e coletivamente.
Mas se
prefere deixar "tudo como está para ver como é que fica" não se
assuste quando lhe enfiarem um revólver na cara ou exigirem que trabalhe mais
por menos salário. Afinal, você merece, como todos aqueles que não percebem que
cidadania e democracia são sempre conquista coletiva que depende do corajoso
empenho de cada um de nós.
Frei Betto é escritor, autor de “O diabo na corte –
leitura crítica do Brasil atual” (Cortez), entre outros livros. Livraria
virtual: freibetto.org
Frei Betto é autor de 69 livros, editados no Brasil
e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org Ali
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