FREI ALOÍSIO FRAGOSO
(10/05/2021)
Está aí um mistério que não encontra
repouso em minha mente inquieta: *a paciência de Deus*. Como é possível, da
parte Dele, suportar uma infinidadade de usos e abusos: mentiras, violências,
hipocrisias, genocídios, guerras, cometidos em seu nome! Cheguei a imaginar que
se trata de uma reação de prudência. Sendo
Ele onisciente e
onipotente, qualquer intervenção sua seria vista como abuso de poder.
Há um caso, no entanto, que dispensa todas
as medidas de prudência: a defesa de crianças contra crimes hediondos (aliás,
qualquer agressão a uma criança é um crime hediondo.)
Já vi cenas de pais e de mães entregando
seu corpo ao perigo de morte iminente, para proteger seus filhinhos. E o Pai do
Céu? - Prefiro conter a vontade de protestar, deixando-me tocar por duas
convicções pessoais: os mistérios maiores da natureza humana não cabem dentro
do nosso limitadíssimo cérebro. Há muita coisa que não entendemos e nunca
entenderemos; afirmar isso não é atentar contra a razão, mas reconhecer seu
limite. Depois, acredito firmemente que Deus não permite a uma criança sofrer a
dor física relativa a estes crimes.
Na ordem das idéias, consigo conviver
melhor com os paradoxos e as "loucuras" dos filósofos. Sempre me doía
n'alma ouvir Marx declarar que "a religião é ópio para o povo". Até
descobrir, com o tempo e a visão dos fatos, que ele tinha razão. Há certas
práticas religiosas que produzem nos devotos o mesmo efeito do ópio: total
alienação da realidade (exemplo: "aceite com paciência e humildade as
injustiças desta vida, para merecer a
Justiça de Deus na vida futura".)
Doía-me mais ainda a declaração de Nietzsche: "Deus está
morto". Encarei esta blasfêmia como um desafio. Outras leituras mais
atentas do mesmo autor abriram-me o entendimento. Ele não está significando que
o Ser Supremo deixou de existir. Está questionando comportamentos humanos
derivados da Fé, rebelando-se contra uma certa moral nascida da prática
religiosa (recusar presentes da vida em troca de um objetivo imaginário).
Recusando Deus, podemos nos livrar de repressões impostas em nome Dele. Renego
esta última conclusão, mas não há como negar a parte de Verdade contida nas
premissas.
Marx e Nietzsche estavam se referindo a
uma prática religiosa e a uma Divindade que não tem nada a ver com o Deus da
minha Fé. Já não me sinto agredido e até lhes agradeço, como D.Helder agradecia
aos seus adversários, porque o obrigavam a aprofundar, rever, se necessário, e
consolidar suas convicções.
Completando seu pensamento, Nietzsche
acrescenta: ".... e foram os cristãos que O mataram". Este
complemento me oferece uma ponte para focar o tema da nossa reflexão,
"Deus acima de tudo". Nos lábios de um devoto esclarecido, este
refrão se torna uma bela oração de louvor. Mas dele também resulta "a
morte de Deus", quando utilizado para fins de dominação política. Na
verdade, o que se busca é uma legitimação para determinados propósitos e
estratégias. Que estratégias? Elas povoam diariamente o noticiário da grande
mídia e das redes sociais: a disseminação do ódio, a cultura da violência, a
religiosidade rancorosa, a perseguição contra as minorias sociais, em suma, um
vasto programa de mortes.
Por um momento juntemo-nos aos apóstolos de
Jesus, na Última Ceia, para ouvi-lo
proclamar: "meu mandamento é este: amai-vos uns aos outros como eu vos amei, e ninguém tem maior amor do
que aquele que dá a vida pelos seus". Misturemo-nos com a multidão e O
escutemos dizer: "tudo que fizerdes a um dos vossos irmãos, é a mim que
fazeis".
Por conseguinte, na morte de um filho de
Deus está "a morte de Deus" e aqueles que a executam são
"assassinos de Deus". Desta forma, a manipulação da legenda
"Deus acima de tudo" converte-a na negação do Deus vivo e verdadeiro
presente no meio de nós.
Nietzsche deve estar rindo em sua tumba,
na Alemanha. Mas não queremos que fique com ele a última palavra. Voltaremos ao
assunto.
Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da
Tenda da Fé e escritor
Nenhum comentário:
Postar um comentário