Ivone Gebara
Depois de séculos
de separações religiosas as mais diversas, muitas das quais motivadas
por razões políticas, o século XX assiste a um movimento de
aproximação e diálogo entre elas. O diálogo se faz em primeiro
lugar entre os ramos pertencentes à mesma árvore de origem e em seguida com
árvores diferentes. Assim dentro da árvore cristã vários ramos
começaram a se aproximar, a se olhar, a perceber suas diferenças, a apreciar-se
e até a se abraçar.
Da mesma forma iniciamos
uma aproximação com árvores diferentes do monoteísmo cristão aproximando-nos
mais do monoteísmo judaico e muçulmano. Depois aproximamo-nos das religiões
indígenas e das de corte africano consideradas antes crenças
primitivas. E o processo foi crescendo para outras expressões religiosas
presentes em nossas culturas na tentativa de superar preconceitos e divisões.
Entretanto, a medida que
o ecumenismo e o diálogo inter-religioso, ou seja, a tentativa
de buscar uma aproximação e uma unidade possível entre as religiões e propor
diferentes atividades comuns, fomos esquecendo que outras divisões continuavam
se multiplicando entre nós.
As divisões nasciam em
nós mesmas/os provocadas pela expansão de um Mundo Maior que nos englobava a
todos, um mundo aparentemente aberto pelos meios de comunicação, porém cheio de
fronteiras econômicas, políticas, sociais e emocionais. Mundo profundamente
hierarquizado com aparência democrática. Mundo espetáculo de guerra e de
aparente acesso a bens para todos os habitantes da terra, embora dominado por minorias
que de fato se haviam tornado os novos deuses do planeta Terra. Nossas
velhas divindades culturais identitárias, familiares e pessoais poderiam
sobreviver apenas como consumidoras dos produtos que vinham de todos os lados.
Podíamos apenas conservar nossas divindades ou transformá-las ajustando-as aos
novos tempos contanto que permanecêssemos submissas aos novos deuses ocultos e
dominadores cujo poder ‘religioso’ não era claramente manifesto, mas apenas
sutilmente aparente.
Nosso ecumenismo rendia
lucro à Grande Divindade sem nome, a Cabeça maior do mundo.
Organizávamos convenções, assembleias, reuniões em nome do diálogo religioso e
inter-religioso a nível nacional e internacional e éramos secundadas por ajudas
indiretamente provenientes dos cofres da Grande Divindade. Essa, um dia achou
que não apenas a união entre religiões era importante, mas também a manutenção
da divisão entre elas. Dividiu-nos de novo. Classificou nossos corpos, nossas
ideias, nossas tendências, nossas cores, nossas origens, nosso sexo e
justificou-as com nossas tradições e até com nossos livros sagrados.
Não percebemos as
divisões que incitados/as pela Divindade Maior acabamos criando em
nossa própria família, em nossa casa, em nós mesmas/os. Havia cristãos
ultraconservadores, conservadores, progressistas, ultra-progressistas, sem
igreja, com novas comunidades etc. Da mesma forma muçulmanos e judeus cada
vez mais ortodoxos ou progressistas divididos e opostos uns aos outros. Havia
gente do candomblé e da umbanda de direita, de centro e de
esquerda... Havia feministas e antifeministas.... Havia gays, lésbicas,
transsexuais, transgêneros... Havia dúvidas crescentes interiores e exteriores
quanto à nossa própria situação identitária pessoal e social... E a Babel se
fez entre nós de tal forma que apenas ouvíamos a nossa própria voz, apenas
dávamos razão aos que de perto nos ouviam. Já não víamos o outro, apenas
constatávamos sua diferença, sua incômoda diferença aliada a suas posições
políticas e a seu lugar econômico. Já não ouvíamos sua voz própria, apenas
enquadrávamos seus balbucios como legais ou ilegais, como conformes à nossa lei
religiosa ou inconformes e condenáveis segundo nossas ideologias. Os bons eram
os parecidos comigo, os bons eram os que acreditavam no meu deus embora
afirmássemos que Deus era todo poderoso, boníssimo e espírito puro...
As iniciativas
ecumênicas foram muitas durante dezenas de anos assim como a riqueza
dos diálogos inter-religiosos que provocamos e que nos ensinaram
tanto. Cursos, leituras bíblicas, assembleias e campanhas ecumênicas da
fraternidade para celebrarmos juntas a Quaresma que nos lembrava a trágica
morte injusta de Jesus e sua gloriosa ressurreição. Convidamo-nos mutuamente
ao diálogo e a ajudar o pobre , o órfão e a viúva relidos
de formas diferentes na vida das novas opressões que tínhamos construído e
estávamos vivendo. Mediamo-nos por nossas mútuas opressões, aceitações,
rejeições e ações. Demonizávamos alguns e angelizávamos outros na tentativa de
sobreviver sem pensar na obediência à Grande Divindade oculta que nos
comandava. Chegamos ao ponto máximo em 2021. Foi quando nos demos conta das
divisões que havíamos construído, muitas vezes sem perceber e outras vezes
percebendo-nos como os donos da verdade sobre os outros/as que julgávamos com
cetro forte de ferro.
Assim, sem perceber condenamos
à morte o ecumenismo que havíamos buscado e construído. Estávamos
destruindo um quadro belíssimo pintado a muitas mãos e corações.
Desconectamo-nos da tradição de proximidade de uns e outras tão fortemente
presente nos Evangelhos. Esquecemos a humanidade que nos unia e a rica diversidade
que mantinha nossas vidas.
Alguns então assinaram
o decreto de morte ao ecumenismo, à fraternidade e sororidade comuns
quando se julgaram cristãos superiores aos outros, quando defenderam hierarquizações
no cristianismo julgando-se ser os primeiros em proximidade histórica à
Jesus. Esqueceram-se da história passada, dos desmandos religiosos e políticos
e anularam as razões das separações fortalecendo posturas duvidosas sem buscar
esclarecer a história passada com lucidez e cuidado.
Por isso apesar de sermos
construtores/as de divisões e apesar de nossas buscas pelo bem comum há
dias que a gente se sente ‘como quem partiu ou morreu’... A gente estanca de
repente, estarrecidas frente a uma palavra institucional tão contrária à
tradição dos Evangelhos, tão desconectada da realidade das comunidades
cristãs, tão distante das causas propagadas pelo Evangelho. A gente sente
a desconexão entre a vida e as pregações! E isto temos vivido com a Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021. O texto base
suscitou divisões, fez aparecer o verniz que nos unia, revelou sua fragmentação
múltipla, mostrou o pluralismo desrespeitoso que defendíamos.
A Pastora Romi Márcia Bencke secretária nacional
do CONIC (Conselho Nacional das Igrejas Cristãs) foi vítima dessas
armadilhas inconsequentes lideradas por homens aparentemente bem preparados e
socialmente bem posicionados. Ela foi criticada e diminuída por alguns que
abraçam um cristianismo entre as muitas formas de cristianismo, porém
que se julga superior e mais verdadeiro que outros.
Bispos católicos em
nota pública diante da situação conflitual a esquecem e nem sequer seu nome é
lembrado por essas autoridades da Igreja Católica Romana. Ao contrário,
buscam explicar aos seus algozes, aos que se distanciam do hoje dos Evangelhos
as razões de suas próprias atitudes eclesiásticas. Buscam justificar algumas
aberturas institucionais apenas para continuar mantendo posturas que foram
parte da cristandade dos séculos passados.
Os que condenam o ecumenismo,
os que condenam o respeito a um cristianismo plural, os que condenam as
lutas das mulheres por direitos, estes recebem atenção e cuidado. Os
destruidores das diferenças recebem acolhida e apreço sub-reptício. Os que
detêm o poder das alturas, os que não se preocupam com os corpos reais merecem
resposta e explicações. Que ecumenismo é esse?
O triste fim de um
certo Ecumenismo se anuncia. Não seria mesmo bom que este ecumenismo
controlado por poderosas autoridades morresse? Não seria bom que esse
ecumenismo institucional desaparecesse?
Muitas de nós mulheres
cristãs, horrorizadas com essas condutas temos vontade de gritar o que o anjo
da Igreja de Laodiceia gritou: ... “Não sois frios nem quentes,
estamos para vomitar-vos de nossa boca” (Apocalipse 3: 15, 16). Estamos
vomitando esse ecumenismo e criando algo diferente, talvez algo como
uma amizade para além das instituições, uma cumplicidade nas dores e alegrias
comuns...
Que tristeza ler a nota
da CNBB! A Igreja Católica não é membro do CONIC? Se é porque se distancia
de suas orientações, de suas posturas como se fosse uma instituição da qual não
somos parte? Mais uma vez o ecumenismo institucional declara-se
moribundo!
Por que as autoridades
eclesiásticas insistem que sua palavra ‘católica’ seja a mais ouvida e
seja considerada a mais próxima do Evangelho de Jesus? Não seria essa pretensão
oculta algo do colonialismo que historicamente nos caracterizou, algo
de nossa centralidade romana julgada sempre superior? Não seria essa tentação
de superioridade sempre presente nos limitados esforços para um ecumenismo
real? Não estariam alguns senhores fortalecendo um ecumenismo hierárquico
patriarcal e misógino que não constrói uma igualdade nas relações
diferentes? Não estariam menosprezando as palavras das mulheres que nos últimos
decênios têm sustentado a tradição do Evangelho para além das fronteiras
institucionais, para além do confessionalismo excludente, para além das divisões
que os conflitos da guerra santa patriarcal querem manter a todo custo?
Institucionalmente, e
talvez até mesmo dentro de si, muitos continuam a repetir a oração do fariseu no
Templo: “ Ó Deus, graças vos dou porque não sou como o resto dos homens,
ladrões, injustos, adúlteros e nem como essa ‘publicana’. Jejuo duas vezes por
semana, pago o dízimo de todos os meus rendimentos”. Lucas 18,11.
Atrevo-me a expressar-me
com certa dureza de linguagem e julgamento inevitável. Porém, nem de longe me
aproximo do desprezo com o qual a nota da presidência da CNBB de 9 de
fevereiro de 2021, ignorou nossa amiga e irmã Romi Bencke, desconsiderando
seu trabalho e os ataques infames e maldosos que lhe foram dirigidos. Os bispos
concentraram-se em formalidades e em benefícios pecuniários que são fruto de
pedidos de gente bem pouco comprometida com a sorte dos mais pobres e com a
justiça nas relações. Porém, é a eles que eles se explicam e é para eles que se
justificam.
Perdoem-me a ousadia do
julgamento, mas parece que algumas autoridades religiosas revelam
estar protegendo mais a efígie de César cunhada nas moedas de ouro do que as
necessidades do povo!
Algo de tudo o que
escrevi no calor da ira e da paixão desses dias é o que especialmente muitas
mulheres e homens das Igrejas Cristãs sentem frente à nota da presidência
da CNBB em relação a Campanha da Fraternidade Ecumênica e à complexa
situação das Igrejas cristãs no mundo de hoje.
Há um ecumenismo que
se termina no mundo e especialmente no Brasil e outro que está em pleno vigor.
O ecumenismo eclesiástico que defende seu próprio terreno, seu
dinheiro, suas obras, suas doutrinas e dogmas este está em extinção. Uma
outra Campanha da Fraternidade Ecumênica cujo lema “Fraternidade e
Diálogo: compromisso de amor” está sendo vivida e orientada por grupos pequenos
muitos dos quais liderados por mulheres da estirpe de Agar, de Sara, Miriam, Débora, Rute, Maria, Marielle, Romi, Sonia, Luzmarina, Valéria, Magali, Bianca, Yuri...
Delas está nascendo uma outra organização de vida cristã!
O Lema da Campanha: “Cristo
é a nossa paz. Do que era dividido fez uma unidade” não parece que se ajusta à
nota dos bispos e ao desejo de muitos. A nota tem provocado guerra, divisões,
mentiras sobretudo porque não incentiva a campanha ecumênica, mas nas
entrelinhas e na conclusão final refere-se a Campanha da Fraternidade
Católica, aquela na qual muitos julgam ter mais poder e pretendem dirigir os
fiéis como manda a sua santa ‘Madre Igreja”.
Talvez seja mesmo a hora
e a vez do fim do ecumenismo institucional! Talvez seja tempo de
retomarmos de novo nossa vida, nossa liberdade
comum, nossas crenças
vitais, nossas conversas de cozinha, nossas hortas de ervas medicinais...
Quem tem ouvidos para
ouvir ouça, quem tem olhos para ver veja o que está acontecendo para além das
fronteiras institucionais. É o Movimento plural de Jesus, qual fênix
aparentemente destruída nascendo surpreendentemente de novo!
Ivone Gebara é filosofa e teóloga feminista. Foi professora do Instituto de
Teologia do Recife e trabalhou na formação de agentes de pastoral para o meio
popular sobretudo do nordeste do Brasil. Doutora em Filosofia e Doutora em
Ciências religiosas é autora de muitos livros e artigos. Vive atualmente em São
Paulo e pertence à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora.
É autora de mais de 30 livros publicados e dezenas de artigos sobre a
temática.
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