Frei Betto
Desde que
a humanidade criou a escrita, graças aos sumérios três mil anos antes de
Cristo, cartas foram trocadas entre reinos e pessoas, gravadas em pedra,
cerâmica, papiro, pergaminho ou papel. Até que surgiu, no século passado, a
escrita digital, que pode ser impressa. Mas raramente acontece na comunicação
interpessoal nas redes digitais.
Embora a
troca de mensagens tenha ganho em velocidade, dispensando envelopes, selos,
custo de correios e prazo de entrega, ela notoriamente perde em qualidade.
Simplifica-se a grafia, criam-se símbolos e neologismos, aproxima-se a escrita
da linguagem onomatopeica. O idioma empobrece, reduzido a signos linguísticos
ou imagens que encurtam frases e palavras – é o internetês, sistema
de linguagem taquigráfica, fonética e visual. Nele, sacrificam-se a grafia, a
pontuação e a gramática. Perdem a língua e a memória da humanidade. A
comunicação digital se esvai como os sinais de fumaça dos povos Apaches.
Temos a
conquista perene das cartas de Paulo, a apóstolo, porque foram registradas em
material duradouro, o pergaminho, como ele assinala na Segunda Carta a
Timóteo: “Quando vieres, traze o manto que deixei em Trôade, em casa de
Carpo, bem como os livros, especialmente os pergaminhos” (4,13).
Graças à carta
que Kafka escreveu a seu pai, em 1919 (e que jamais chegou às mãos dele),
sabe-se mais a respeito do autor de A metamorfose e do
conflito de gerações à época. O mais famoso poema de T.S.
Eliot, A terra devastada, é melhor conhecido pelas leituras das
cartas trocadas pelo autor com o poeta e crítico literário Ezra Pound.
Haveríamos
de conhecer tão belas declarações de amor se tivessem sido transmitidas por
Tweet ou WhatsApp? “Bom dia, anjo querido,
beijo-te muito. Pensei em ti durante todo o caminho. Acabo de chegar. Sinto-me
cansado e instalei-me para te escrever. Acabam de trazer-me chá e água para me
lavar, mas no intervalo escrevo-te umas linhas. (…) Na sala de espera da
estação, andei de lá para cá a pensar em ti e dizia comigo: mas por que deixei
eu a minha Anuska?” (Dostoiévski, Carta a Anna Grigórievna Snítkina, 1867).
“A responsabilidade de fazer-te feliz é decerto melindrosa; mas eu
aceito-a com alegria, e estou certo que saberei desempenhar este agradável
encargo. (...) Sábado é o dia da minha ida; faltam poucos dias e está tão
longe! Mas que fazer? A resignação é necessária para quem está à porta do
paraíso; não afrontemos o destino que é tão bom conosco. (…) Depois… depois
querida, queimaremos o Mundo, porque só é verdadeiramente senhor do Mundo quem
está acima das suas glórias fofas e das suas ambições estéreis. Estamos ambos
neste caso; amamo-nos; e eu vivo e morro por ti” (Machado
de Assis, Carta a Carolina de Novais, 1869).
“Não imaginas as saudades de ti que sinto nestas
ocasiões de doença, de abatimento e de tristeza. O outro dia, quando falei
contigo a propósito de eu estar doente, pareceu-me (e creio que com razão) que
o assunto te aborrecia, que pouco te importavas com isso. Eu compreendo bem
que, estando tu de saúde, pouco te rales com o que os outros sofrem, mesmo
quando esses «outros» são, por exemplo, eu, a quem tu dizes amar. Compreendo
que uma pessoa doente é maçadora, e que é difícil ter carinhos para ela. Mas eu
pedia-te apenas que «fingisses» esses carinhos, que «simulasses» algum
interesse por mim. Isso, ao menos, não me magoaria tanto como a mistura do teu
interesse por mim e da tua indiferença pelo meu bem-estar” (Fernando
Pessoa, Carta a Ofélia Queiroz, 1920).
“Então
tu pensas que há muitos casais como nós por esse mundo? Os nossos mimos, a
nossa intimidade, as nossas carícias são só nossas; no nosso amor não há
cansaços, não há fastios, meu pequenito adorado! Como o meu desequilibrado e
inconstante coração d’artista se prendeu a ti! Como um raminho de hera que
criou raízes e que se agarra cada vez mais. Vim para os teus braços chicoteada
pela vida...” (Florbela Espanca, Correspondência,
1921).
O que
seria da história da literatura brasileira sem as cartas de Mário de Andrade a
Carlos Drummond de Andrade; de Tristão de Athayde
(Alceu Amoroso Lima) à sua filha Maria Thereza, monja
beneditina (que tive a honra de editar para o Instituto Moreira Salles); de
Guimarães Rosa a João Condé ao explicar o processo de criação e edição de Sagarana?
O gênero
epistolar me introduziu na literatura. Meu primeiro livro publicado reúne
cartas que escrevi ao longo de quatro anos de encarceramento sob a ditadura
militar: Cartas da prisão (Companhia das Letras). Teria havido
resgate e registro dos subterrâneos da história se, à época, já existisse
comunicação virtual?
Fico a
pensar como as futuras gerações haverão de conhecer a troca de mensagens, via
redes digitais, entre os que hoje se destacam como escritores e artistas a seus
amigos, editores e agentes.
A
comunicação digital encurta distâncias, o que é ótimo, mas sonega história, o
que é lamentável.
Frei Betto é escritor, autor de “Espiritualidade,
amor e êxtase” (Vozes), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org
Frei Betto é autor de 70 livros, editados no Brasil e no exterior. Você
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