Maria Clara Lucchetti Bingemer
Há
filósofos que concebem a filosofia como um exercício do pensar, entendendo
pensar em conexão direta com a razão e o que dela deriva. Há outros
filósofos que, sem deixar de assim entender seu ofício, encaram-no como
exercício espiritual. Veja-se por exemplo, a esse respeito, o grande filósofo
francês Pierre Hadot, que concebia a filosofia como exercício espiritual,
entendendo por isso um projeto de transformação e mudança da própria maneira de
viver. Os exercícios espirituais não se restringem, portanto, a atividades do
pensamento, mas referem-se à capacidade de elevação do indivíduo à vida em
conexão com o Todo.
Hadot defendeu a filosofia como modo de vida, e assim tentou fazê-la e
elaborá-la durante sua vida. Sustentava que a filosofia antiga propôs à
humanidade uma arte de viver. Era crítico da filosofia moderna que, a seu
ver, aparecia sobretudo como a construção de um serviço meramente técnico,
reservado a peritos e especialistas.
Tarcísio Padilha é um filósofo que viveu exercitando-se para alargar e
dilatar seu pensamento e espaços interiores e comungar com a realidade. No
exercício da docência de filosofia, da escrita de reflexões filosóficas e dos
cargos de direção e responsabilidade de diversos órgãos, como a Academia
Brasileira de Letras, da qual foi presidente. O Centro Dom Vital, que conduziu
por vários anos, deixava transparecer essa integração harmoniosa entre
pensamento e vida não só na objetividade das conferências, aulas e textos, como
no trato com as pessoas.
Conjugava uma seriedade profunda em tudo que fazia, com uma doçura e
flexibilidade encantadoras. Prestigioso filósofo, transitava em altas
esferas e relacionava-se com nomes como Jean Luc Marion, entre outros. Era de
uma simplicidade maravilhosa, prodigalizando a todos o mesmo luminoso sorriso
que se prolongava da boca aos olhos e a essa descia iluminando o rosto por
inteiro. Essa maneira de ser também o levava a jamais aceitar qualquer
tipo de privilégio, como passar na frente na fila do elevador quando alunos e
jovens lhe ofereciam. Esperava como todos, com sorriso e bom humor.
Nossa amizade começou por contatos acadêmicos, mas também e não menos
por sintonia de fé. Tarcísio era católico e vivia sua fé com
transparência e alegria. Mas também com um imenso respeito pelo
sentimento religioso ou não religioso dos outros com quem convivia. Em vários
eventos aos quais me convidou para participar como conferencista pude constatar
essa liberdade de espírito, que o fazia aberto e receptivo a todas as correntes
de pensamento e opções políticas.
Como presidente da Academia Brasileira de Letras tinha o respeito total
dos colegas que o consideravam – como me disse uma acadêmica em conversa
pessoal e amistosa – um “cardeal”, querendo por isso significar um líder que
tinha o consenso dos colegas acadêmicos.
Tarcísio nutria grande afeto e admiração pelo Papa João Paulo II, com
quem esteve e conversou mais de uma vez. Um dos últimos eventos por ele
organizado foi o lançamento de um livro que intitulou, em homenagem ao papa
polonês, “O cura da aldeia global”. A clara alusão ao “cura de aldeia”,
famosa obra do escritor francês Georges Bernanos, não escapa ao leitor que
frequenta a obra do último. Mas é de se notar a feliz analogia que o
filósofo elabora para apresentar a figura do admirado e querido Papa.
Em conversas pessoais, confidenciou-me que admirava muito a
sensibilidade e o capacidade de comunicação de Wojtyla e como se dirigia com
força a multidões pelo mundo inteiro com uma imensa força espiritual.
Concordo com meu querido amigo quanto à capacidade de comunicador de João Paulo
II. Todos recordamos seu encontro, em 1980, com os jovens em Belo Horizonte
cantando A Barca. Convidada por Tarcísio, participei como
conferencista do encontro do Papa com as famílias, em 1997, e pude constatar
que, apesar dos anos que se passaram, a força comunicadora continuava
intacta.
Esse filósofo, que fazia do pensar um exercício espiritual, nos deixou
no último dia 9 de setembro, vitimado pela Covid-19. A filosofia, a docência, a
academia brasileira e a comunidade eclesial católica sentem o vazio da saudade
e abraçam sua esposa Ruth e toda a sua família. Eu, pessoalmente, sinto também
a saudade da presença do grande amigo, verdadeiro irmão que se foi.
Porém, o lastro de sua presença luminosa é companhia permanente e inspiração
para seguir fazendo do pensar um exercício espiritual e um modo de viver.
Obrigada, Tarcísio.
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio
e autora de Teologia e literatura: afinidades e segredos
compartilhados, entre outros livros (PUC-Rio e Editora Vozes).
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