FREI ALOÍSIO FRAGOSO
(07/09/2021)
A função de um Princípio Unificador
Universal, conferida ao deus Eros na antiga mitologia grega, o Cristianismo
transpôs para o Cristo Messias. S. Paulo a descreve com palavras breves e
solenes: "Nele, por Ele e para Ele são todas as coisas" Rom. 11, 36.
No entanto, a evolução desta idéia, através dos séculos,
esteve condicionada à diversidade cultural dos povos e épocas e,
simultaneamente, subordinada ao poder político,
com suas ambições e corrupção.
A despeito disso, jamais se aniquilou a
utopia original. Ela foi se recompondo à medida em que a prática
monotoista sobrepujava o politeismo. As provas disso não se encontram em
doutrinas, liturgias e teologias, mas sim na espiritualidade dos grandes
místicos.
Leia-se este poema do místico muçulmano
Rabia, do ano 800: "Senhor, se eu te adorar pelo medo do inferno,
queima-me em suas fogueiras. Se eu te adorar pelo Paraíso, exclua-me do
Paraíso. Mas se eu te adorar pelo que és, não escondas de mim a tua face. Os bens terrenos que me
reservaste, dá-os aos meus inimigos. Os bens que me reservaste para a outra
vida, dá-os aos teus amigos. Quanto a mim, Tu me bastas." E compare-se com este outro de Sta.Teresa
d'Ávila, mística cristã do ano 1560:
"não me move, Senhor, para querer-te, o céu que me hás um dia
prometido. E não me move o inferno tão temido, para deixar por isso de
ofender-te. Moves-me ao teu amor de tal maneira, que, a não haver o céu, inda
te amara, e, a não haver o inferno, te temera. Nada tens que me dar porque te
queira, pois se o que ouso esperar não esperara, o mesmo que te quero te
quisera". Esta convergência mística
foi capaz de abrir o diálogo entre cristãos e muçulmanos infinitamente mais do
que as Cruzadas da Idade Média.
Somos limitados pela pobreza da linguagem ao
nosso dispor. Usamos a mesma palavra de quatro letrinhas mágicas para designar
idéias contrapostas: "amor de Deus", "morrer de amor",
"fazer amor", "matar por amor", etc. E as quatro letrinhas
perdem sua magia. Temos, pois, de superar os limites da linguagem para entrar
na compreensão do amor divino.
Nesta busca de superação, os grandes
místicos mergulhavam na transcendência. A exemplo de Sta. Teresa d'Ávila:
"Vivo sem viver em mim, e tão alto bem almejo, que morro por não
morrer".
Incapazes de ir tão longe, nós, o comum
dos mortais, indagamos: o que pode provar que amamos a Deus? A oração da fé? A construção de templos suntuosos? A
peregrinação a lugares santos? A assistência ao culto? O jejum e a
penitência? Jesus responde com uma regra
de ouro: "tudo que fazeis aos
irmãos mais pequeninos, é a mim que fazeis" cf. Mt. 25, 31-36. Isso é que
prova, o resto apenas expressa o amor.
A pandemia do coronavirus abriu as
cortinas do mundo para assistirmos ao drama comovente de fatos reais de amor
sem distinção, sem discriminação, para além de fronteiras e crenças. Segue um
exemplo brasileiro:
Depois de acordar diariamente às 5h da
manhã, Jean Carlos de Assis, 52, se veste e se arma para combater o covid. De
macacão branco, máscara, óculos, bota, luvas e touca, ele se põe a desinfetar
os espaços públicos em Betim. Percorre quilômetros de ruas e avenidas onde há
maior circulação de pessoas. E o faz com a alegria de quem encontrou uma nova razão de vida. Ele
mesmo confessa: "sinto-me orgulhoso e feliz porque estou ajudando a acabar
com esta pandemia".
Aí está uma semelhança do amor de Deus no
exercício de uma modesta profissão.
-Frei
Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor
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